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Tentativa de boicote a ‘Ainda Estou Aqui’ por questões políticas ‘não gerou um segundo sequer de preocupação’, diz Walter Salles | Eu &

Redação
por Redação

Recém-chegado de Paris, ele abriu uma breve pausa em sua frenética agenda para o Valor no fim de 2024. Nestes tempos, ele é praticamente um visitante em sua casa, no Jardim Botânico, desde que “Ainda Estou Aqui” estreou no Festival de Veneza, em setembro, e colocou o Brasil, quase instantaneamente, na rota de disputa por uma vaga ao Oscar de melhor filme internacional.

O que obriga Salles a trocar de fuso horário o tempo todo é justamente a campanha no exterior do drama histórico que é um hit doméstico: mais de 3 milhões de espectadores e mais de R$ 65 milhões nas bilheterias. E todo o esforço de divulgação lá fora promete culminar com indicações ao prêmio máximo da Academia de Hollywood.

Embora “Ainda Estou Aqui” tenha perdido o Globo de Ouro da categoria internacional para “Emilia Pérez”, no último domingo, o título nacional ganhou um empurrãozinho a mais com um prêmio de peso: a inesperada vitória de Fernanda Torres como melhor atriz dramática, a primeira brasileira a levar o troféu.

Se confirmada, no anúncio agora adiado para o dia 19, a vaga para o filme-tributo à força da advogada e ativista Eunice Paiva (1929-2018), Salles será o único diretor brasileiro a concorrer duas vezes ao Oscar por produção estrangeira. E caso Torres receba uma indicação, uma promessa agora mais fácil de ser cumprida (depois que a sua conquista empolgou a cerimônia do Globo e pôs mais fogo nas redes sociais), o cineasta também entra para a história por conseguir extrair duas performances “oscarizáveis” de brasileiras.

Basicamente, nós mostramos o filme e o deixamos navegar com forças próprias”

“Central do Brasil” brigou pelas duas estatuetas douradas em 1999, com a atriz Fernanda Montenegro, no papel de Dora, a “escrevedora” de cartas para analfabetos.

“As mulheres vão sempre muito mais longe do que os homens”, afirma Salles, de fala mansa e pausada. “Minha tendência é gravitar em torno de filmes com protagonistas femininas, por elas representarem uma forma de inteligência e uma vivência de mundo que me atrai muito mais do que o universo masculino”, diz.

“Em ‘Ainda Estou Aqui’, Nanda e Dona Fernanda permitiram que eu trabalhasse com a subtração e a contenção, embora seja difícil atuar nessa faixa. É dizer muito com pouco e acreditar na essência para não esvaziar o gesto.”

Com reputação de perfeccionista e workaholic, o diretor tem cumprido uma agenda intensa de compromissos para promover “Ainda Estou Aqui”, uma produção original do Globoplay distribuída pela Sony Classics. Salles tem passado por muitas cidades (onde são realizados festivais, cerimônias de premiação ou exibições destinadas a votantes).

Entre elas, Los Angeles, East Hampton, Santa Barbara, Nova York, Palm Springs, Toronto, Veneza, San Sebastián, Londres, Roma, Paris, Biarritz e Marrakech. Ou seja, um troca-troca de aviões mais que suficiente para deixar Salles, um exemplo de homem bonito que envelhece bem, exibindo agora um charme mais maduro, com o semblante cansado, o que ele disfarça com sorrisos e muita simpatia.

“Minha tendência é gravitar em torno de filmes com protagonistas femininas”, diz Walter Salles — Foto: Luciana Whitaker/Valor

“Não gosto de classificar a nossa jornada em diferentes países como campanha. Prefiro falar em caminhada”, diz o cineasta, um dos maiores do Brasil e, possivelmente, o mais tímido.

“No Festival Nova York, na conversa que tive com Jia Zhangke [diretor chinês] no palco, fui o mais calado. O que mais tentei fazer foi ouvi-lo”, comenta Salles, que começa a se encolher na cadeira quando é iniciada a sessão de fotos para a entrevista. Talvez por desgostar tanto de ser fotografado, ele acabe de olhos fechados na maioria das imagens.

A garçonete do Café Severino se aproxima, mas Salles continua ignorando o cardápio deixado na mesa. “Venho bastante aqui porque a nossa sala de montagem fica a uns 500 metros”, afirma o fundador da VideoFilmes, em parceria com o irmão João Moreira Salles. Ele abriu a produtora, em 1986, ao desistir de vez de seguir carreira em economia, para se posicionar atrás das câmeras e fazer o que realmente gosta: “usar o cinema para desvendar o mundo”.

Além de “Central do Brasil’’, Salles é responsável por outros filmes emblemáticos da cultura brasileira (ou da América Latina) que viajaram pelo mundo: “Terra Estrangeira” (1996), “Abril Despedaçado” (2001), “Diários de Motocicleta” (2004) e “Linha de Passe” (2008, em parceria com Daniela Thomas), além de “Na Estrada” (2012), adaptação do clássico de Jack Kerouac.

Conhecido pela sensibilidade que imprime em tudo o que faz, o diretor escolheu o Café Severino como cenário deste “À Mesa com o Valor” por razões afetivas. “A livraria é dos meus amigos Laura, Marcus, Edu e Helena Gasparian. Alguns estão no filme”, conta Salles, referindo-se ao momento de licença poética de “Ainda Estou Aqui”.

Embora a Argumento tenha aberto as suas portas no Rio em 1979, oito anos depois de Rubens Paiva (1929-1971) ser preso, torturado e assassinado pelos militares, a livraria faz parte da narrativa, como se já existisse.

A imprecisão histórica é justificada pela relação de amizade entre as famílias e o fato de a Argumento ter oferecido livros “proibidos” na época da ditadura. Lá foi rodada a cena em que o casal Dalva e Fernando Gasparian (Maeve Jinkings e Charles Fricks) tenta convencer Eunice e Rubens Paiva (Fernanda Torres e Selton Mello) a trocaram o Rio por Londres, por estar “perigoso demais” permanecer no Brasil.

Quando a garçonete volta para tirar os pedidos, Salles avisa que não vai comer, embora o cardápio seja extenso, trazendo guloseimas, sanduíches e pratos mais elaborados. Em função do jet-lag por ter voltado ao Brasil no dia anterior, o cineasta só quer mesmo se hidratar, o que é sempre recomendável nessas situações.

Salles com Fernanda Montenegro e Vinicius de Oliveira nas filmagens de “Central do Brasil” — Foto: Divulgação/Paula Prandini
Salles com Fernanda Montenegro e Vinicius de Oliveira nas filmagens de “Central do Brasil” — Foto: Divulgação/Paula Prandini

Primeiramente, ele pede água. Mas logo depois muda de ideia e pergunta quais são os sucos oferecidos, optando pelo de melancia. “Com gengibre e sem gelo”, acrescenta Salles, despojado no visual escolhido para a entrevista, com camisa polo por baixo de camisa de estampa xadrez, calça jeans e tênis.

“Muito das versões do roteiro foram discutidas nesta mesa”, recorda o cineasta, batendo na madeira. “Como o filme foi construído com gestos de generosidade e afeto, mantemos essa qualidade humana no lançamento em diferentes países”, completa Salles, embora ele saiba que “Ainda Estou Aqui” terá uma longa jornada para entrar no Oscar e superar o principal adversário: “Emilia Pérez” (França), uma produção da Netflix.

As indicações e, consequentemente, as vitórias no Oscar não são alcançadas apenas por méritos artísticos. Contam muito as estratégias de marketing planejadas com bastante antecedência e, de preferência, capazes de fazer o filme virar quase uma marca.

Nas temporadas de prêmios, os estúdios de Hollywood costumam gastar de US$ 3 milhões a US$ 15 milhões para chamar a atenção aos seus títulos. O montante é empregado principalmente com anúncios na mídia tradicional e nas redes sociais, com exibições com características de festa de gala em cinemas de prestígio e com material promocional enviado aos votantes (com o aviso “For your consideration”).

“São formas de divulgação que ultrapassam o território do cinema. É um jogo no qual não saberíamos nem como entrar”, observa Salles.

A ousadia de Jacques Audiard, em “Emilia Pérez”, conta a favor de seu filme. A história de transição de gênero de um chefão de cartel de drogas mexicano em ritmo de musical garantiu, logo na sua première, o Prêmio do Júri em Cannes. Mas a forte campanha é um fator de peso, o que ajudou “Emilia Pérez” a sair da cerimônia do Globo com quatro troféus, incluindo os de melhor musical ou comédia e melhor filme de língua não inglesa.

Premiado também em sua primeira exibição mundial, em Veneza, como melhor roteiro, “Ainda Estou Aqui” figura igualmente nas principais listas de previsões para o Oscar, na categoria de filme internacional. Exceto por “Emilia Pérez”, nenhum outro título estrangeiro foi recebido tão calorosamente no circuito de festivais como o drama que reacende a memória do horror da ditadura pelo prisma da família de Paiva.

Walter Salles cumprimentando Fernanda Torres logo após ela ser anunciada vencedora do Globo de Ouro de atriz dramática — Foto: Christopher Polk/Getty Images
Walter Salles cumprimentando Fernanda Torres logo após ela ser anunciada vencedora do Globo de Ouro de atriz dramática — Foto: Christopher Polk/Getty Images

“A Semente do Fruto Sagrado”, de Mohammad Rasoulof, que representa a Alemanha, é o terceiro candidato mais provável para indicação. O retrato da repressão violenta sofrida pelas mulheres no Irã também é presença constante nas listas, embora não seja o que se pode chamar de unanimidade em termos de crítica – apontado, muitas vezes, como um filme irregular. Já as previsões para a quinta e a sexta vaga oscilam nas listas, entre “A Garota da Agulha” (Dinamarca), “Vermiglio” (Itália”), “Kneecap” (Irlanda) e “Flow” (Letônia).

Diante desse panorama, a indicação de “Ainda Estou Aqui” poderia ser dada como “quase garantida”? Como até o “The New York Times” aponta que a nomeação do título brasileiro é “amplamente esperada”, de acordo com suas fontes de Hollywood, seria uma insensatez da Academia não reconhecer o filme, colocando-o entre os finalistas, não?

“Eu me permito discordar’’, brinca Salles, entre um gole e outro de suco. “No meu entender, nada está garantido neste ano, a não ser para filmes que pertencem à estrutura internacional de streaming. É uma forma de distribuição que favorece muito os candidatos nesse tipo de votação. E este ano a competição na categoria internacional provavelmente está ainda mais acirrada que a briga pelo Oscar principal [de melhor filme, com dez vagas], o que é uma boa notícia. É sinal de que o cinema independente está vivendo um momento de criatividade único.”

Salles destaca que não havia tantos filmes com chances de figurar entre os cinco finalistas no ano da indicação de “Central do Brasil”, quando o troféu acabou nas mãos do italiano Roberto Benigni, de “A Vida É Bela”. Vale lembrar que, na época, houve uma discrepância considerável entre os valores divulgados de campanha.

A Miramax, então liderada por Harvey Weinstein, investiu cerca de US$ 12 milhões na promoção de “A Vida É Bela”, um valor 12 vezes maior que o gasto pela Sony Classics com a jornada inspiradora de Dora, a partir da estação Central do Brasil.

Mas nem o fato de a Academia ter sido pressionada a incluir novos integrantes, em 2016, buscando mais diversidade e inclusão, passando a somar hoje cerca de 10 mil votantes, ajuda “Ainda Estou Aqui” neste ano? Nesta categoria, todos os membros podem votar, contanto que tenham visto uma boa porcentagem dos filmes inscritos por cada país, o que resulta na lista de 15 finalistas. No passo seguinte, aqueles que assistiram a todos os pré-selecionados votam de novo, chegando aos cinco candidatos.

“O fato de os votos para filme internacional virem hoje, em boa parte, de membros fora dos EUA, prever o que vai acontecer ficou ainda mais difícil”, comenta Salles, acrescentando que se trata, também, de uma questão geopolítica. “Um país como a França tem aproximadamente o mesmo número de votantes do que toda a América do Sul. São uns 200 e poucos. Com o tempo, a tendência é vermos um equilíbrio maior, mas não é o caso hoje.”

Membro de uma das famílias mais antigas de banqueiros do Brasil, a Moreira Salles, o que o coloca esporadicamente nas listas dos cineastas mais ricos do mundo, Salles afirma que os “apoios espontâneos inflam as velas” de “Ainda Estou Aqui”. “Esses abraços são a nossa maior força”, conta, citando personalidades do cinema que apoiam o filme, como Sean Penn, Olivier Assayas, Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro, Alexander Payne e Valeria Golino, entre outras.

“Basicamente, nós mostramos o filme e o deixamos navegar com forças próprias. Estamos honrando os compromissos com os distribuidores independentes que compraram ‘Ainda Estou Aqui’, quando ele existia apenas no roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega. Por isso vamos, de país em país, ajudar no lançamento em diferentes culturas e latitudes. Cinema é uma questão de desejo e fé. Precisamos ter respeito por quem nos deu um voto de confiança”, diz Salles.

O fato de “Ainda Estou Aqui” só chegar ao circuito comercial a partir deste mês na maioria dos países atrapalha as suas chances no Oscar, na visão do diretor. Nos EUA, até então o título só tinha passado por alguns cinemas, em lançamento limitado, para se tornar elegível ao Oscar. “Isso reduz o potencial da obra”, afirma, destacando que só os votantes presentes em festivais ou nas sessões especiais puderam ver o longa no cinema. Já a maioria teve acesso ao mesmo apenas online, na plataforma da Academia.

“Só houve espaço agora para o filme estrear porque o número de salas diminuiu depois da pandemia. São menos cinemas para títulos independentes, obrigando que você fique na fila para poder entrar em cartaz”, afirma Salles, que cita ainda a compra de salas por streamers. A Netflix, por exemplo, adquiriu um cinema em Nova York e outro em Los Angeles, onde faz as premières de seu conteúdo original.

Ele reforça que toda a trajetória de “Ainda Estou Aqui”, durante e após as filmagens, é ditada pelo desejo da equipe de ser fiel a Eunice Paiva, que foi símbolo de resistência. Na pele de Torres, a viúva não perde a dignidade ou a classe, mesmo ao passar 12 dias presa no DOI-Codi, prestando esclarecimentos sobre as atividades “comunistas” do marido.

“Nós sempre nos perguntamos: o que Eunice faria ou diria aqui? E isso é claramente o que guia Nanda na divulgação”, diz Salles, ao comentar o poderoso engajamento digital de Torres, o que beneficia muito o filme.

Reservado, Salles passa longe das redes sociais, onde Torres se tornou um fenômeno com conteúdos virais e memes. “Só sei das redes sociais graças aos meus filhos’’, admite o cineasta, pai dos adolescentes Vicente e Helena, do casamento com a artista plástica Maria Klabin.

“Nanda convida diferentes públicos, incluindo o jovem, a refletirem sobre a ditadura e sobre a sociedade que queremos ser no futuro. E, ao mesmo tempo, ela presta uma homenagem à criatividade brasileira nos memes, o que me faz lembrar do humor do gênio Millôr Fernandes (1923-2012). Ele está aqui em algum lugar”, diz Salles, procurando uma foto do escritor e humorista na parede amarela do Café Severino.

O espaço é decorado com imagens em preto e branco, incluindo fotografias de artistas. “Existia na profunda inteligência em Millôr uma capacidade de refletir de forma sintética e aguda sobre o mundo. E os memes fazem isso também. São espécies de netos de Millôr.”

Salles sorri ao ser lembrado de que a torcida do brasileiro por “Ainda Estou Aqui” nos prêmios internacionais, sobretudo no Oscar, evoca (mesmo ligeiramente) a euforia de uma Copa do Mundo. Hoje em dia, é uma façanha um filme político conseguir ser abraçado de forma tão apaixonada pelo Brasil, apesar das divergências ideológicas.

“Houve uma tentativa de boicote na largada, mas o público se encarregou de responder à questão. Isso não gerou um segundo sequer de preocupação”, recorda Salles, referindo-se às postagens de direita nas redes sociais.

A capacidade de transcender o discurso político, na visão do cineasta, já estaria no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. “Temos aqui não só a reconstrução da memória de um país a partir do microcosmo de uma família, como a percepção de Eunice como uma heroína silenciosa, que conseguiu manter aquela família coesa, ultrapassando a tragédia. É uma obra sobre resiliência, uma qualidade universal que quebra o binarismo estúpido vigente no Brasil”, diz Salles, já encerrando a entrevista. “Como o lançamento do filme no exterior segue até abril ou maio, são mais uns bons quatro ou cinco meses de poeira pela frente”, brinca ele, ao se despedir.

Fonte: Externa

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