E como explicar esse excesso de premiações? É como se o Oscar movesse a engrenagem de um maquinário maior, criado para festejar as conquistas e destacar os melhores do ano no cinema, por ser uma indústria que tanto fascínio exerce no imaginário popular.
O número de prêmios ainda cresce indefinidamente se forem somadas as honrarias concedidas fora dos EUA por cada país, como o Bafta inglês, o Goya espanhol ou o César francês, com troféus para produções nacionais e estrangeiras. Ou seja, é estatueta que não acaba mais, deixando até o cinéfilo mais devotado com dificuldade para acompanhar tantas premiações.
Possivelmente o brasileiro passou a prestar mais atenção nos prêmios de cinema desde que “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, foi projetado no cenário mundial, aumentando as suas chances de uma indicação ao Oscar.
Um dos 15 semifinalistas na categoria de filme internacional – o que o coloca na briga por uma das cinco vagas que serão anunciadas no dia 17, com as demais indicações -, “Ainda Estou Aqui” disputa vários outros troféus que contemplam produções em língua não inglesa. O mesmo acontece na categoria de melhor atriz, com Fernanda Torres, capturada aqui em estado de graça como a viúva que não abaixa a cabeça para a ditadura militar.
A cada nova indicação, tanto para o filme quanto para Fernanda, é como se o Brasil estivesse mais perto de uma vitória no Oscar. “Ainda Estou Aqui” e sua atriz concorrem neste domingo, dia 5, ao Globo de Ouro, que chega à 82ª edição e é atribuído por jornalistas estrangeiros que cobrem a indústria de entretenimento americana, representando 85 países.
Por mais que a imagem do Globo tenha sido arranhada, com as acusações que surgiram em 2021, de corrupção, suborno e de racismo, a “Festa do Ano de Hollywood” (por ter bebida e comida à vontade) voltou a ter peso. O evento é importante pela alta visibilidade dada aos concorrentes, deixando-os no radar do público e dos votantes (até mesmo de outros prêmios, como o Oscar).
Para recuperar a credibilidade do Globo, visto em 2024 por quase 16 milhões de pessoas (somando a audiência das transmissões na TV e nas plataformas de streaming), foi preciso uma grande reestruturação. A lista A de Hollywood só voltou a pisar no tapete vermelho do evento, realizado no hotel Beverly Hilton, após uma série de mudanças. A organização passou a ser mais transparente, convidou membros fora da área de Los Angeles e dos EUA (em busca de diversidade) e impôs diretrizes rigorosas para evitar a má conduta de votantes (que desfrutavam de benefícios, trocavam favores etc.).
“Ainda Estou Aqui” entrou na disputa de mais de 20 troféus, além do Globo de Ouro, que voltou a abrir a temporada de premiações mais importantes do ano. O filme caiu nas graças das associações de críticos nos EUA, onde muitas cidades têm uma sociedade que distribui estatuetas. Essas entidades representam não só cidades como Estados americanos, sendo ainda, muitas vezes, divididas entre a cobertura de cinema tradicional e a online.
Algumas das associações que reconheceram o título brasileiro (com indicação ou prêmio) foram a de Nova York (de críticos online); Greater Western de Nova York; as de Las Vegas; Los Angeles; San Francisco; Austin; Washington; Dallas-Fort Worth; Norte do Texas; Flórida; Utah; Carolina do Norte e Novo México.
Fernanda Torres ainda foi premiada como melhor atriz no Critics Choice Awards (CCA), entregue pela maior associação de críticos da América do Norte – mas não nos prêmios principais, que serão conhecidos no dia 12, em noite de gala em Santa Monica, transmitida pelo canal E!. Pelo quarto ano consecutivo, o CCA realizou uma cerimônia à parte, o Celebration of Latino Cinema & Television, para festejar a produção audiovisual dessa comunidade. É uma espécie de prêmio dentro do prêmio.
Como é extensa a lista de estatuetas atribuídas aos talentos do cinema apenas nos EUA, há sites dedicados exclusivamente à temporada de prêmios, que buscam cobrir todos os anúncios de indicações e de vencedores, além de fazerem previsões. Os principais são o AwardsWatch, o Awardsdaily e o Gold Derby – este mais voltado ao Oscar e ao Globo de Ouro.
Entre as organizações menos conhecidas e mais específicas, que também elegem os melhores do ano, estão a Alliance of Women Film Journalists (AWFJ), com troféus entregues desde 2006 por críticas mulheres e de língua inglesa, e a Set Decorators Society of America (SDSA), que começou a homenagear os decoradores de cenário em 2021.
Com a proliferação de prêmios menores, tanto da indústria quanto da crítica, não há o risco de uma diluição do impacto dos maiores, vindos de associações de mais prestígio? Ou de o público dar menos importância às distinções?
“Os principais jogadores sempre serão o Oscar, no topo, seguido pelos prêmios dos sindicatos que representam os profissionais da indústria”, diz Tyler Coates, escritor e jornalista especializado na cobertura de prêmios de cinema em Los Angeles.
“O resto dos prêmios só é útil como ferramenta de campanha, embora alguns deles não tenham muito peso durante a temporada. Um exemplo é o da Hollywood Critics Association”, completa ele, referindo-se à entidade que mudou de nome em 2023, passando a se chamar Hollywood Creative Alliance, com o seu prêmio batizado de Astra Awards.
Autor do “Considerations”, um boletim informativo sobre a temporada de premiações, Coates destaca as honrarias feitas pelas entidades de classe, por serem as de maior influência sobre a corrida do Oscar com as suas escolhas. O Sindicato dos Diretores (Directors Guild of America – DGA), que elege seus vencedores pela 77ª vez neste ano, é um dos que mais antecipa o resultado do prêmio da Academia na categoria. Nos últimos 11 anos, 10 cineastas que conquistaram o DGA repetiram o feito no Oscar.
As premiações são uma forma de colocar essas associações em evidência, pelo menos uma vez por ano. Elas são as que, depois da Academia, têm mais credibilidade e tradição em prêmios por representarem o voto dos próprios profissionais reconhecendo o trabalho dos colegas, mesmo que seus troféus não sejam atribuídos há tanto tempo quanto o Oscar.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Ampas) chega à 97ª edição, com o evento agendado para 2 de março, no Dolby Theatre. Já o Sindicato dos Roteiristas (Writers Guild of America – WGA) totaliza neste ano 76 edições, e a Associação de Produtores (Producers Guild of America – PGA) prepara a sua 36ª noite de gala.
“Para um sindicato, os prêmios também representam a arrecadação de fundos, com as taxas de inscrição e os ingressos. É um jeito de ganhar dinheiro”, afirma Coates. No caso da entidade de Diretores de Fotografia (American Society of Cinematographers – ASC), por exemplo, os concorrentes ao próximo prêmio da casa, o 39º de sua história, pagaram US$ 375 por cada inscrição. Os figurinistas do Costume Designers Guild (CDG) desembolsaram US$ 250 para entrar na briga pelos troféus da 27ª cerimônia da categoria.
O sindicato mais glamouroso de Hollywood, o dos atores (Screen Actors Guild – American Federation of Television and Radio Artists – SAG-AFTRA), tem uma fonte de renda a mais com a entrega de seu prêmio, que chega à 31ª edição. Além das taxas de inscrição (de US$ 200 por categoria individual e US$ 2 mil por elenco), eles vendem os direitos de transmissão da festa.
A atriz Kristen Bell é a anfitriã do evento agendado para o domingo de 23 de fevereiro, que poderá ser acompanhado ao vivo pelos assinantes da Netflix. Esta é a terceira parceria entre o gigante do streaming e o SAG, que vinha sofrendo para conseguir manter um bom público na TV a cabo.
“O fato de esses eventos darem dinheiro é uma vantagem. E existe ainda uma minieconomia em torno de prêmios em Los Angeles. Além dos jornalistas que cobrem o assunto especificamente, há publicitários e estrategistas especializados nas campanhas e outras centenas de pessoas envolvidas na realização das cerimônias. São produtores, músicos de estúdio, profissionais técnicos, fornecedores de comida, bartenders, designers e outros. As premiações podem parecer frívolas, mas criam muitos empregos”, diz Coates.
Para o ator Sean Penn, a temporada de prêmios é superestimada em Hollywood, o que também vale para a entrega do Oscar, o mais cobiçado. “Ele é, primeiramente, um programa de televisão”, diz o ganhador de duas estatuetas douradas. Penn foi eleito melhor ator por “Milk – A Voz da Igualdade’’ (2008), pelo papel do ativista gay Harvey Milk, e por “Sobre Meninos e Lobos’’ (2003), na pele do pai transtornado com o assassinato brutal da filha.
“Os produtores do programa e a Academia agem com uma covardia extraordinária no que diz respeito ao mundo da expressão, sendo responsáveis por limitar a imaginação e as diferentes expressões culturais”, afirma o ator, em sua passagem pela 21ª edição do Festival Internacional de Cinema de Marrakech, no Marrocos.
Esses prêmios têm o propósito de chamar a atenção para títulos ainda desconhecidos’
— Klaus Eder
Um descontentamento parecido com o de Penn foi o que impulsionou o movimento #OscarsSoWhite (#OscarsTãoBrancos), que surgiu nas redes sociais em 2015. Ao gerar polêmica, pedindo mais diversidade nos talentos celebrados pela Academia, ele colocou os prêmios de cinema em geral sob um microscópio, pressionando as organizações a levarem mais a sério a inclusão e representação em suas indicações.
O próprio Penn gerou outra controvérsia, em 2023, ao ameaçar derreter as suas estatuetas do Oscar, depois que a Academia descartou a participação virtual do presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, na cerimônia daquele ano. Mas o ator não foi adiante, preferindo dar um Oscar de presente a Zelensky, para que ele fosse derretido e transformado em balas contra os russos.
“O Oscar só significa mais dinheiro, por um breve período”, afirma o ator, revelando como foi beneficiado com a conquista dos troféus. “Mas eu nunca tive um relacionamento com a Academia. Fui indicado cinco vezes e só compareci ao evento duas vezes. E acabei ganhando naquelas ocasiões. Ser indicado não exige só a sua presença na noite de premiação. Você precisa ir a todas as festas, que são sempre as mesmas e com as mesmas pessoas durante meses. É tão chato quanto parece.”
Quase nada agrada Penn na temporada de prêmios. “É tudo bobagem, a não ser o fato de alguns grandes filmes fazerem os eventos acontecerem”, conta o ator, elogiando “Ainda Estou Aqui” e “Emilia Pérez”, o representante francês que promete ser o maior rival da produção brasileira na categoria internacional. “Eu só me animo com o que chamamos de Oscar quando filmes como esses são reconhecidos, o que provavelmente acontecerá neste ano.”
Os prêmios costumam influenciar na percepção pública dos filmes, despertando curiosidade sobretudo sobre os vencedores, além de encorajarem o espectador a ir mais ao cinema.
“É um privilégio ajudar a chamar a atenção para o trabalho de cineastas excepcionais e suas equipes. No ano passado, dois terços das pessoas que assistiram às coberturas de prêmios de cinema no Reino Unido se sentiram inspiradas a ir ao cinema local (de acordo com pesquisa)”, diz Anna Higgs, presidente do comitê do prêmio da Academia Britânica de Cinema, o Bafta, apelidado de “Oscar inglês”.
Em 2024, o evento londrino conseguiu 3,8 milhões de espectadores na BBC One, o alcance mais alto desde 2020. E mais 20,6 milhões de pessoas assistiram nas redes sociais aos destaques da cerimônia do prêmio, entregue pela primeira vez em 1949 (20 anos depois do primeiro Oscar). “Premiações como a nossa se tornaram mais vitais no mundo pós-pandemia, onde o público tem uma infinidade de histórias na ponta dos dedos. Oferecemos uma pausa para reflexão”, diz.
O excesso atual de premiações de cinema não surpreende ou incomoda Higgs. “É reconfortante ver a diversidade de vozes e culturas reconhecidas hoje ao redor do mundo. As artes na tela têm alcance e influência incríveis, ao entreterem, inspirarem e conectarem pessoas além das fronteiras. Com mais histórias compartilhadas nas telas do que nunca, é compreensível o apetite ainda maior em celebrar as conquistas criativas”, diz Higgs.
Em linhas gerais, há uma diferença entre as premiações da indústria e da crítica – a imprensa especializada, pela própria natureza da profissão, vê (ou deveria ver) muito mais filmes do que o votante de uma academia ou de um sindicato.
“Das distinções vindas dos críticos, você pode esperar mais curiosidade, descobertas e uma independência em relação à indústria e aos seus padrões. Os vitoriosos normalmente não são filmes que já trilharam seu caminho e fizeram sucesso. Esses prêmios têm o propósito de chamar a atenção para títulos ainda desconhecidos, para que eles tenham público”, diz o alemão Klaus Eder, que foi secretário-geral da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), de 1987 até o fim de 2024.
Com quase 60 anos de carreira, Eder acompanhou de perto a multiplicação de entregas de troféus de cinema. “Atualmente há prêmios demais para filmes. É improvável que um filme passe por festivais, por exemplo, sem ganhar nada”, afirma o crítico, referindo-se ao circuito internacional de festivais, que também aponta os melhores a cada edição. Muitas das produções em evidência na temporada oficial de prêmios já conquistaram algo nos festivais, como é o caso de “Ainda Estou Aqui”, vencedor da estatueta de melhor roteiro em Veneza.
“Quanto mais prêmios, melhor para os cineastas”, diz o diretor argentino Santiago Mitre, que viu seu “Argentina, 1985” (2022) ser indicado ao Oscar de melhor filme internacional e colecionar quase 50 troféus ao longo da trajetória. “Valorizo o sistema de premiações porque cada uma das minhas vitórias me deu mais confiança. Os cineastas são, muitas vezes, criaturas frágeis”, conta Mitre, que já desenvolve um projeto para rodar em inglês, graças à projeção alcançada com o último trabalho em Hollywood.
Vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo desempenho como a mãe solteira de “Boyhood – Da Infância à Juventude” (2014), Patricia Arquette não esconde o seu fascínio pela estatueta de 34 centímetros do Oscar. Ela admite que sonhava com o prêmio desde a infância, em Los Angeles, sem se importar em cair no clichê.
“Quando era pequena, enquanto tomava banho, eu me imaginei, muitas vezes, segurando um frasco de xampu e agradecendo à Academia”, diz a atriz, durante o último Festival de Marrakech.
Arquette não levou apenas o Oscar da categoria naquele ano de glória, mas o Bafta, o Critics Choice, o Globo de Ouro, o Independent Spirit, o SAG e uma sacola de outros troféus, somando mais de 40 pelo trabalho. “A minha vida mudou com a conquista do Oscar. Desde então, as pessoas passaram a me ver de um jeito diferente. É como se eu tivesse mais valor, o que é estranho”, diz a atriz, reforçando que, por mais prêmios que existam por aí, o Oscar é o Oscar.