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Quais são as iniciativas que buscam tornar as escolas mais receptivas a estudantes com deficiências | Eu &

Redação
por Redação

A cena se repete todos os anos na Jangada Escola, na zona sul do Rio: os pais vão conhecer as instalações, conversam sobre o projeto político-pedagógico de viés antirracista e, quando ouvem a confirmação de que há vagas disponíveis, revelam que o filho tem alguma deficiência. Em algumas escolas tradicionais, é comum as vagas “sumirem” nesses casos, como num passe de mágica. “Criamos a escola com o objetivo do letramento racial, mas rapidamente encontramos outras exclusões e o capacitismo entrou na pauta”, recorda Maria Gabriela Mendonça.

Cenário parecido se vê na Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira do país, de Salvador, que está abrindo sua primeira unidade no Rio, com a atriz Leandra Leal como sócia. “No Rio, mais da metade das pré-matrículas que recebemos é de pessoas com deficiência. A gente abriu para o diverso e todos os tipos vieram. E que bom que vieram”, diz Bárbara Carine, idealizadora da escola e vencedora do Prêmio Jabuti de 2024 na categoria Educação.

A abordagem interseccional da educação inclusiva vem ganhando força no país, tanto entre especialistas e ativistas quanto nas diretrizes do Ministério da Educação (MEC), diante dos recentes retrocessos na implementação das políticas públicas.

“Diferentemente da visão transversal, que tem um eixo principal e o resto é secundário, na interseccionalidade tudo é importante. É uma confluência de diferenças, onde tudo tem que ser visto e trabalhado de um modo único”, explica Claudia Werneck, ativista em direitos humanos e pioneira na disseminação do conceito de sociedade inclusiva na América Latina.

Ela cita dados da ONU que mostram que 82% das pessoas com deficiência (PCD) vivem na pobreza em países em desenvolvimento e, no Brasil, em sua maioria são negras. Isso sem contar pessoas LGBTQIA+. “Se a criança é negra, possivelmente é pobre; se tem deficiência e vive na pobreza, possivelmente é negra. É importante ter uma abordagem interseccional das diferenças. Tem que cruzar tudo.”

É preciso que as pessoas com deficiência se entendam como parte do ambiente”

— Laís Costa

No MEC, o órgão responsável por essas populações fragilizadas é a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), recriada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023, após ser extinta como um dos primeiros atos do governo Bolsonaro. A secretaria, criada em 2004, foi alvo de artilharia pesada da extrema direita por ter sido responsável pelo material “Escola Sem Homofobia”, chamado de “kit gay” nas fake news.

“A discussão de inclusão ficou encapsulada em acessibilidade, como se ser autista ou cego fosse uma questão absoluta, excluindo classe, raça, gênero, o que diminui o real significado da palavra inclusão”, diz Alexandre Mapurunga, diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Secadi. “Discutir isso de maneira aprofundada, interseccional, é importante para implementação das políticas públicas.”

Com base em diagnóstico de 2023 que mostrou que apenas 6,5% dos professores de sala comum na rede pública têm formação em educação especial na perspectiva inclusiva, a área definiu a formação dos profissionais como prioritária. As aulas começaram no primeiro ano, com 250 mil vagas iniciais e, até 2026, será um total de 1,25 milhão. Em educação para as relações étnico-raciais, educação escolar quilombola e equidade, serão mais de 215 mil vagas em cursos presenciais e a distância, além de envio de materiais para as escolas e monitoramento dos indicadores.

Outro foco é a ampliação do acesso a alunos, com mais de R$ 500 milhões investidos em 2023 e 2024 em salas multifuncionais. “Quanto mais qualificarmos o ensino inclusivo nas escolas comuns, mais vamos facilitar essa migração e gerar confiança nas famílias”, frisa Zara Figueiredo, titular da Secadi.

Censo do Inep mostra que o número de estudantes da educação especial em classes comuns cresceu de 145.141 em 2003 para 1.617.420 em 2023, o que corresponde a um acesso de 91%, considerando públicas e privadas, e 97%, considerando apenas as públicas. Em classes exclusivas, o número caiu de 300 mil para 154.010. Em 20 anos um resultado acumulado bom, mas, segundo Mapurunga, nos últimos dez anos o ritmo de melhora havia caído significativamente. Dos 9% que ainda estão em escolas especiais, 3,4% são da educação infantil, número que há dois anos era de 5%.

A escola verdadeiramente inclusiva se transforma para todas as crianças aprenderem com dignidade, diz Claudia Werneck — Foto: Chico Ferreira/Valor

“Caminhamos para a universalização na escola comum, mas ainda há muito o que avançar”, diz Figueiredo. Os índices de reprovação, por exemplo, são mais altos do que os dos alunos comuns. “Temos que entender as barreiras que levam esses alunos a não aprenderem e criar condições para eliminá-las.”

Na perspectiva racial, os estudantes negros são maioria nas escolas públicas, com uma fatia em torno de 65%, incluindo pardos e pretos. Em 2023, 71,6% das pessoas que não concluíram o ensino médio eram pretas ou pardas, enquanto entre os brancos a parcela foi de 27,4%, de acordo com o IBGE.

“Há um racismo institucionalizado, uma baixa expectativa sobre nós mesmos”, diagnostica Figueiredo. “Na escola acham que não aprendemos, que são turmas de ineducáveis, e, diante da baixa expectativa dos professores, o aluno não tem nem coragem de levantar a mão em sala. Tanto na pública quanto na privada há a marcação racial e a formação de viés inconsciente.”

A secretária também recorre aos números para mostrar a importância do olhar intersetorial, o ponto comum onde as exclusões de encontram: 20% dos analfabetos são de pessoas com deficiência, e 2,8% dos alunos do EJA são de quilombolas.

A corrida agora é contra o tempo. Segundo Maria Teresa Mantoan, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (Leped), na Faculdade de Educação da Unicamp, depois dos avanços obtidos com a elaboração da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, em 2008, o país veio regredindo a partir do fim do governo Dilma Rousseff “em termos conceituais, em formação de professores, falta de equipamento de acessibilidade e em interpretação da legislação”.

Numa área repleta de desafios, é preciso ter continuidade das políticas e consistência nos investimentos, mas o que mais se vê são soluços, assinala Mariana Rosa, consultora, cofundadora do Instituto Cáue, pesquisadora na USP, conselheira nacional de Educação e mãe da Alice, que é PCD. E o maior atraso está na rede particular.

“A escola privada tem a ver com performance e competitividade, seguindo um raciocínio de que a pública vai dar conta da parcela excluída, enquanto a particular segue deixando as pessoas para trás, como se houvesse um mundo à parte.”

A Jangada Escola promove encontros mensais para letramento racial — Foto: Divulgação
A Jangada Escola promove encontros mensais para letramento racial — Foto: Divulgação

Entre os retrocessos, aponta Mantoan, estão o uso indiscriminado dos mediadores, também conhecidos como acompanhantes especializados ou auxiliares de inclusão, e o retorno das escolas especiais, consideradas segregadoras, tendência formalizada em decreto do então presidente Jair Bolsonaro em 2020, e revogado em 2 de janeiro de 2023.

“Escola não é lugar de mediador. É lugar de aluno e professor num ambiente livre de tensões”, critica a professora da Unicamp. “O problema é que a maioria exerce poder sobre o aluno de tal forma que ele só considera que teve um bom desenvolvimento quando corresponde ao que ele definiu como competência e habilidade para cada conteúdo. Mas isso é impossível, porque a natureza humana tem autonomia intelectual.”

Com isso, continua ela, o estudante vira reprodutor de conhecimento e aqueles que não aprendem como a escola quer necessitam de apoio pedagógico e terapeutas, muitas vezes dentro da instituição.

Laís Costa, pesquisadora da Fiocruz, diz que as escolas hoje são as maiores demandantes de diagnósticos e o mediador é uma evidência a mais da exclusão, numa reafirmação diária de que a criança não pertence àquele espaço. Além disso, prossegue, tira a responsabilidade da instituição de ensino de garantir a educação de todos. “Nas instituições públicas, quando o mediador não vai, não deixam a criança ficar.”

Costa sentiu na pele a exclusão de uma de suas filhas, Camila, de 10 anos, diagnosticada com síndrome de Down, e a solidão da pessoa com deficiência na sociedade. Quando decidiu tirá-la da escola, em que vivia uma rotina de preconceito, teve muita dificuldade em encontrar acolhimento em outra instituição. “É uma solidão muito grande a deficiência na escola. Minha filha era uma espécie de pet, e é preciso que as pessoas com deficiência se entendam como parte do ambiente.”

Do trauma veio o ponto de partida para ampliar a luta. A pesquisadora, cocoordenadora da Especialização em Direitos Humanos da Pessoa com Deficiência da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), se tornou uma militante anticapacitismo. Em 2023, sob demanda do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, por exemplo, desenvolveu uma série de cartilhas sobre saúde e direitos das pessoas com deficiência, com versões em libras e audiodescrição em inglês, espanhol e francês.

Para Mariana Rosa, a mediação precisa ser avaliada caso a caso, para não faltar, mas também não exceder, reproduzindo segregação. Sua filha, por exemplo, que tem paralisia cerebral, tem uma necessidade maior de apoio para higiene e locomoção, mas, frisa ela, é preciso pensar nas redes de colaboração na escola, nos cuidados uns com os outros.

“Não é puxadinho, homenagem no Dia da Consciência Negra, da cultura indígena e rampa que vão ser a virada”, diz Mariana Rosa — Foto: Divulgação
“Não é puxadinho, homenagem no Dia da Consciência Negra, da cultura indígena e rampa que vão ser a virada”, diz Mariana Rosa — Foto: Divulgação

A escola verdadeiramente inclusiva se transforma para todas as crianças aprenderem com dignidade, diz Claudia Werneck. “Todas as vezes em que localiza a diferença e esquece que todo mundo é diferente, não é inclusão.”

Ela ressalta que os danos causados pelos recentes retrocessos nas políticas públicas são irrecuperáveis e que a exclusão custa caro para a sociedade. “Uma criança que fica de fora da sua geração não entra nunca mais. E tudo que não deu certo antes vai eclodir no mercado de trabalho. As cotas são mal executadas porque os jovens não frequentaram ambiente inclusivo e quando chegam no trabalho não sabem conviver com diversidade.”

Do outro lado, afirma, quem tem deficiência e foi criado em escola especial tem dificuldade de lidar com a inclusão. É uma proposta revolucionária de mudança da escola, continua a criadora da ONG Escola de Gente, para que ela dê conta de todas as crianças que existem e não daquelas que gostaríamos que existisse.

Autora do clássico “Um amigo diferente?”, Werneck lembra ainda que todas as crianças podem precisar de inclusão em algum momento, por exemplo se tiver que se afastar da escola e precisar se readaptar. “Ouço nas escolas se referirem a ‘alunos de inclusão’, mas não é isso, não é só para minorias, é para quem está em situação de minoria.” Ela conta que, quando costumava ler seu livro para turmas de crianças, era comum ser interrompida para que elas compartilhassem suas fragilidades ou problemas, ou seja, falavam de suas diferenças com naturalidade.

“Não é puxadinho, homenagem no Dia da Consciência Negra, da cultura indígena e rampa que vão ser a virada”, complementa Mariana Rosa, que dá assessoria voluntária a escolas públicas e presta consultoria a instituições privadas, com apoio à formação de professores, elaboração projeto político-pedagógico e assessoramento de famílias.

Uma dessas escolas particulares com que ela trabalhou foi a Jangada, inaugurada em 2018 no bairro do Cosme Velho, no Rio. A instituição promove encontros mensais para letramento racial, processo de reeducação que visa conscientizar as pessoas sobre as relações raciais na sociedade, mas a interseccionalidade das políticas de inclusão vem ganhando espaço na pauta, inclusive puxada pela crescente procura por famílias com questões de exclusão diferentes, que percebem que encontrarão acolhimento.

Maria Gabriela Mendonça, que fundou a Jangada com o então companheiro Miguel Mendes, frisa, no entanto, que “é necessário dar nomes para ser realmente interseccional”. “O mito da democracia racial vai ser fortalecido se dissermos que é tudo a mesma coisa. O racismo não está para a sociedade como o capacitismo, mas a interseccionalidade vai trazer todos os ambientes contra as lutas opressivas.” Hoje a Jangada tem 185 alunos, 90% do corpo docente formados por educadores negros.

De acordo com Mendonça, aumentou a pressão para as escolas particulares se enquadrarem nas políticas públicas de educação inclusiva e na Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq).

Depois de matriculada, alerta ela, como fica? “A instituição pode ser obrigada a matricular, mas depois você percebe que ali não há lugar, não é para você. A escola particular, como é regida sob seus próprios estatutos e projetos político-pedagógicos, não segue as políticas e precisa ser denunciada.”

No país, o Rio Grande do Norte é reconhecido como o estado mais avançado na implementação das políticas de inclusão. Rebecca Nunes, promotora de Justiça de Natal, tem um trabalho contínuo de fiscalização da adequação das escolas e conta que desde 2023 o licenciamento de uma instituição particular ou pública no estado passou a depender de garantias de acessibilidade.

Todos têm aula de libras, tanto ouvintes quanto pessoas com deficiência, e o material escolar é disponibilizado em áudio, braile e libras. De acordo com ela, não há escolas especiais hoje na região. As que por algum motivo se recusam a se adequar são levadas à Justiça.

“Para que a inclusão comece a ser uma realidade mais ampla, é preciso começar atuando em duas frentes: o aumento da autoestima do professor, que precisa entender que ele dá conta da inclusão, investindo dinheiro na sua formação, e a adequação dos espaços nas escolas”, resume Werneck. “É um processo sem fim, mas é um sonho possível, trabalho por ele há 30 anos.”

Fonte: Externa

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