Na newsletter que distribui semanalmente em seu LinkedIn, Ethan Harris se classifica como um “economista veterano”. Não é para menos. Sua carreira conta com passagens pela distrital de Nova York do Federal Reserve, J.P. Morgan, Lehman Brothers e pelo Bank of America (BofA), onde foi chefe de pesquisa global por longos anos, até sua aposentadoria no ano passado. A larga experiência, no entanto, não o impede de continuar se surpreendendo. Em entrevista ao Valor, Harris revela que a proposta do candidato republicano Donald Trump de promover uma deportação em massa de imigrantes é a pior, em termos de impactos econômicos, que já ouviu ao longo de toda sua carreira.
Não que haja entusiasmo com as ideias de qualquer uma das duas candidaturas. Segundo Harris, os partidos parecem ter desistido de encontrar uma solução para os déficits públicos crescentes nos Estados Unidos e as promessas vão no sentido de ampliá-los, mesmo que já estejam em uma trajetória preocupante. Com a queda contínua dos juros dos Treasuries observada desde a década de 1980, o economista nota uma complacência nos mercados de renda fixa com o tema da dívida pública. E, mesmo que seja cedo para fazer previsões catastróficas, o fato de um dos partidos conseguir o controle da Casa Branca e das duas casas legislativas pode marcar o início do despertar dos investidores.
Valor: O sr. está otimista com as propostas econômicas dos candidatos à Casa Branca?
Ethan Harris: Não. Os dois candidatos estão tentando comprar votos ‘oferecendo a Lua’ em termos de políticas. Não acho que haja um bom ponto de escolha para a política econômica. É bastante decepcionante. Para a maioria dos economistas, eu incluído, o fato de ambos os partidos terem desistido de um controle sério do déficit é algo bastante negativo. Isso já vem ocorrendo há algum tempo, mas esta eleição está tomando uma direção nova e mais agressiva. Ambos os candidatos prometem aumentar o déficit em um momento em que ele já está muito alto.
Valor: Como as diferenças entre as propostas dos candidatos nesta eleição se comparam com as outras que o sr. já acompanhou ao longo de sua carreira?
Harris: Digo isso com clareza: as políticas econômicas propostas por Donald Trump são muito mais prejudiciais à economia do que as de Kamala Harris. A que mais se destaca é a deportação geral de imigrantes ilegais. Isso seria absolutamente devastador para a economia. É preciso se perguntar se isso é apenas retórica de campanha ou se há uma vontade política real por trás disso.
Reduzir a independência do Fed pode ser fator que leva o mercado de títulos a despertar de seu sono profundo”
Harris: A noção geral de tentar deportar milhões de pessoas seria bastante devastadora para a economia. Precisamos ter em mente que há cerca de 12 milhões de imigrantes sem documentos, que ocupam os empregos de baixo nível. É o tipo de coisa que os trabalhadores americanos comuns não querem fazer e que são essenciais para vários setores, incluindo agricultura, construção, lazer e hospitalidade, que dependem desse tipo de emprego de baixa renda. Desse universo de 12 milhões de pessoas nos EUA, cerca de três quartos trabalham. Elas não estão aqui para receber assistência social, estão aqui para trabalhar. Querem seus salários e enviar o dinheiro para a família… Estamos cogitando um corte maciço no número de trabalhadores disponíveis na economia.
Valor: Há chances reais dessa política entrar em vigor?
Harris: Meu palpite é que não. Seria muito difícil politicamente, logisticamente e tão devastador para as indústrias afetadas que o que acabaria acontecendo seria, basicamente, uma extensão do que já ocorre hoje, que é um controle mais rígido das fronteiras. Uma deportação em massa seria rapidamente percebida como insustentável. Na minha carreira, eu diria que é a proposta mais danosa à economia que eu já ouvi.
Valor: Qual seria uma política adequada à imigração?
Harris: A reclamação básica de que não houve controle adequado das fronteiras está completamente correta. Os fluxos de entrada foram imensos. Isso é uma história global, basta ver o que está acontecendo também na Europa. É preciso reavaliar as “regras de asilo” e ser mais eficaz controlando a fronteira. A política deveria focar em controlar os novos fluxos e não tentar reverter a história da imigração ilegal.
Valor: Trump parece mais convencido de que as tarifas são úteis para muitos fins…
Harris: Há um acordo entre os partidos de que, do ponto de vista das tarifas, é preciso adotar medidas sobre empresas estrangeiras que são pesadamente subsidiadas e que estão despejando produtos nos EUA. Nesse caso, o país tem o direito e obrigação de reagir. A questão que fica é: você deve usar como uma ferramenta ampla?
Valor: Há uma intenção maior no uso das tarifas comerciais?
Harris: A primeira guerra comercial era restrita a alguns produtos e alguns países. A diferença desta vez é que a proposta é ter tarifas generalizadas de 10% a 20%, incluindo sobre países que são aliados geopolíticos dos EUA. Isso é uma escalada significativa e levaria a história da guerra comercial para um nível quase totalmente mercantilista, no sentido de que a prosperidade só ocorre quando você fecha suas fronteiras e mantém toda a atividade domesticamente. Essa teoria já foi contestada há muito tempo. Essa postura mercantilista é preocupante.
Valor: Ainda é de se esperar retaliações dos parceiros comerciais
Harris: Tarifas motivadas simplesmente pelo desejo de se livrar do déficit comercial não são apoiadas pelo direito internacional. Portanto, é praticamente certo que todas as partes envolvidas no comércio responderão com as mesmas tarifas sobre os EUA. Isso seria ruim para a economia global, inclusive para os EUA. Ainda, quando se segue esse caminho de “olho por olho”, não se sabe quais serão as rodadas adicionais de tarifas. Podemos entrar em uma corrida tarifária global. Isso não é visto desde a Grande Depressão.
Valor: É provável que as tarifas entrem em vigor?
Harris: É um pouco mais difícil prever a aceitação das tarifas, porque elas são muito mais populares entre o público em geral. Há um mal-entendido sobre os efeitos econômicos das tarifas. As pessoas entendem que, se a equipe da cozinha do restaurante for eliminada, obviamente esse tipo de negócio poderá ser fechado. As tarifas vendem uma ideia mais convincente, embora incorreta, de que são uma penalidade para os estrangeiros e não para os americanos. E isso se tornou uma parte tão central da plataforma de Trump que elas devem ocorrer em algum momento.
Valor: Os mercados parecem complacentes com a possibilidade de déficits maiores?
Harris: O mercado de títulos se tornou quase alheio às ações externas nas últimas duas décadas. Se voltarmos à década de 1990, esse tipo de proposta sobre cortes de impostos, aumentos de gastos e tarifas teria um impacto realmente grande no mercado de títulos e teríamos visto as taxas subirem muito, porque o mercado olharia para isso e diria que ambos os candidatos teriam problemas com o déficit. O problema é que os mercados aprenderam a conviver com esses déficits maiores. Há anos os economistas alertam que políticas irresponsáveis criarão taxas de juros mais altas, mas isso simplesmente não aconteceu. Isso deu aos mercados essa confiança que faz com que você não queira precificar esse tipo de cenário até que seja realmente necessário. De 1980 a 2020, houve uma queda quase contínua nos rendimentos dos títulos. A menos que você tenha acertado o ‘timing’ perfeitamente, apostar contra o preço dos títulos [na alta dos juros] tem sido um péssimo negócio há décadas. Toda uma geração de investidores não leva a sério esses avisos dos economistas. Isso tornou o mercado bem complacente.
Valor: Isso está mudando?
Harris: O que vimos no último mês com esse ‘sell-off’ de títulos é, finalmente, o mercado acordando um pouco para o fato de que, se não estamos em um cenário catastrófico, talvez seja possível apostar na alta dos juros longos com essa perspectiva de déficit ruim. Parte da alta dos rendimentos dos títulos está relacionada à retórica da campanha e parte também aos efeitos da mudança de postura do Fed.
Valor: Preocupa o cenário de déficit maior e reação do mercado?
Harris: Eu fico relutante em dizer que o mundo está desabando. Não é um ‘call’ que tem funcionado há muitos anos e eu mesmo já errei algumas vezes ao fazer isso. Se você conversasse comigo há 30 anos, provavelmente eu teria soado muito mais ‘hawkish’ [conservador]. Fico me perguntando quais serão os gatilhos que vão fazer o mercado de títulos se preocupar novamente. Um deles é se um partido vai conseguir a Casa Branca e o controle total do Legislativo, o que abriria espaço para um implementar políticas que ampliariam de maneira agressiva os déficits. Pode ser um limite que faria as pessoas acordarem.
Valor: Por que o sr. não vê uma crise iminente?
Harris: Não há muitas alternativas ao mercado de Treasuries. É parecido com o que ocorre no dólar. Há uma vantagem em ser o emissor global de moeda e ser o centro do sistema financeiro global. É muito difícil saber quando ou se um dia isso vai mudar.
Valor: O excepcionalismo da economia dos EUA deve continuar independente de quem vencer?
Harris: Sigo bastante confiante com a economia. O último ano provou duas coisas que são ótimas. Uma delas é que claramente a economia pode lidar com o nível atual da taxa de juros. A visão de que o Fed está esmagando a economia está simplesmente errada. Os Fed funds são uma pequena parte de como a política monetária é transmitida para a economia. Ela afeta outros mercados, como o mercado de títulos, de ações e de crédito. Todos estão em bom estado.
Valor: Há receio sobre a perda de independência do Fed?
Harris: É uma preocupação séria e é particularmente importante nos EUA, porque somos o emissor da moeda de reserva mundial. As pessoas acreditam nos mercados e na moeda americana, muito porque o banco central é independente. Portanto, há mais em jogo para os EUA do que para outros países que têm a independência de seus bancos centrais questionada. Estávamos falando sobre o que poderia levar o mercado de títulos a despertar de seu sono profundo e reduzir a independência do Fed certamente poderia ser um destes fatores.
Valor: Como podemos observar a evolução desse cenário?
Harris: No primeiro mandato de Trump, ele indicou uma série de candidatos ao banco central. Aqueles que chegaram lá foram somente os bons, inclusive Jerome Powell, que virou presidente. O Senado rejeitou os que não eram qualificados. A questão é se o Senado fará o seu trabalho e aprovará os candidatos que são comprometidos seriamente com a independência do Fed ou se aceitará pessoas que estão comprometidas politicamente. Isso vai demorar um pouco para se desenrolar. Este é outro exemplo de porque o Senado e a composição do Congresso importam muito. Não se trata apenas olhar para o partido, mas também qual é a postura deles sobre o Federal Reserve.