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Por que a cultura caipira voltou a inspirar filmes, séries, novelas e livros | Eu &

Redação
por Redação

As narrativas vão além dos dramas do trabalho no campo e retratam disputas de terra e embate entre gerações. Outros elementos como a busca pela ancestralidade, identidades e dilemas tecnológicos também pautam livros como o fenômeno “Torto arado” (2019), de Itamar Vieira Junior. O romance, que se desenrola a partir do universo de duas irmãs em uma antiga Chapada Diamantina com ares de realismo mágico, já vendeu mais de 800 mil exemplares e traz personagens do imaginário rural brasileiro.

No universo criado por Vieira Junior, depois expandido no romance “Salvar o fogo” (2023), cenas da vida na fazenda, assim como a devoção aos santos e as festas populares, são retratadas. “Trabalhei por muitos anos no campo e vi por lá um jeito de levar a vida todo próprio. No caso de ‘Torto arado’, isso se revela nas ações das personagens e na sua maneira de se relacionar com o tempo e com o ambiente à sua volta. Tudo isso aliado a uma crescente consciência da própria história e do papel da memória para nos dar as referências de quem somos”, diz o escritor.

“Gambé” (2023), de Fred Di Giacomo da Rocha, também se alimenta desse imaginário. O autor, natural de Penápolis, interior de São Paulo, parte de uma perspectiva histórica ao ambientar um romance com fortes traços da cultura caipira – do dialeto falado pelos cavaleiros aos cenários rurais – e com pegada policial no interior do estado. Já “Jenipapo Western” (2024), de Tito Leite, mostra as relações de poder entre jagunços e agricultores em um sertão fantástico marcado pelo lirismo do autor cearense.

Das narrativas que revelam um mundo antigo, como “Torto arado” e “Gambé”, às que se passam em um Brasil contemporâneo, cuja tecnologia é usada no auxílio das tarefas cotidianas, como “Água turva” (2024), da gaúcha Morgana Kretzmann, os dramas das personagens pertencentes ao mundo rural partem da necessidade de se chancelar uma visão subjugada por representantes do poder – políticos, coronéis, o sujeito urbano.

São homens e mulheres marcados pela constante tensão entre os ideais do campo – associado ao idílio e à tradição popular – e o progresso, representado pela iminente ameaça das grandes corporações e pelo processo de descaracterização do ambiente e da cultura.

Não é de hoje que o imaginário rural encanta o espectador brasileiro na TV”

— José Luiz Villamarim

“Os próprios elementos associados ao ‘rural’, como a tradição, a religiosidade ou a relação com a natureza, se tornam parte de um esquema imaginário e com implicações políticas”, afirma Thomaz Amâncio, professor associado de humanidades da Universidade de Chicago, nos EUA.

Para Amâncio, que pesquisa o tema, o meio rural sempre foi um centro de poder no Brasil e continua forte na “era do agro” – referindo-se à expansão do agronegócio no país e suas implicações culturais e sociológicas. “A missão da literatura ‘rural’ contemporânea é mediar de maneira autoconsciente a própria relação com essa herança cultural, enquanto um problema de representação estética e política.”

Obras literárias como as da poeta e antropóloga gaúcha Marília Floôr Kosby fazem jus à tradição estética da literatura sobre o campo, abarcando também a antropologia e sociologia rurais, aponta Amâncio. Filha de um veterinário de animais de fazenda, Kosby volta ao mundo rural em “Genealogia das mulas” (2022).

“Esse elemento pessoal ou autoficcional aparece também em outras obras recentes, como ‘Uma exposição’, de Ieda Magri (2021), e ‘O que é meu’, de José Henrique Bortoluci (2023). O retorno ao campo aparece como uma espécie de acerto de contas com o passado, com o peso da história e de seus traumas e catástrofes”, diz o professor.

Na televisão, séries e novelas também têm sido ambientadas nesse universo. Em 2024, a adaptação do romance “A capital federal”, do escritor Artur Azevedo (1855-1908), se tornou o folhetim “No Rancho Fundo”, exibido na faixa das 18h na Globo. Andréa Beltrão protagonizou uma rígida sertaneja, Zefa Leonel, em uma trama que seguia as transformações de sua família depois de ter encontrado uma pedra preciosa em uma cidade fictícia na Chapada Diamantina.

“Trabalhei por muitos anos no campo e vi por lá um jeito de levar a vida todo próprio”, diz Itamar Vieira Junior — Foto: Divulgação

Gabriel Jacome, diretor de Conteúdo da TV Globo, ressalta que o núcleo de novelas quer ser uma janela para o Brasil, mostrando a pluralidade do povo brasileiro. “A cultura de fora dos grandes centros urbanos é encantadora e cheia de significados, o que é um prato cheio para os criadores. A simplicidade da vida no campo, os mitos da natureza e lendas populares são inspirações para personagens e histórias que fazem parte da alma brasileira, e, por isso, acreditamos que têm força para conectar tantas pessoas através das nossas novelas”, diz.

Assim como “Rancho Fundo”, produções marcadas pela estética rústica, como os remakes de clássicos de Benedito Ruy Barbosa da década de 1990, “Pantanal” (2022) e “Renascer” (2024), surgem como uma aposta segura para atrair a audiência, como aponta o pesquisador de telenovelas Dimitri Pinheiro.

“A telenovela sempre conseguiu acomodar a segmentação do espectador em diferentes núcleos. E a Rede Globo consegue explorar diferentes tipos de espectadores em suas produções”, diz.

Segundo Pinheiro, a cultura caipira ocupa um espaço privilegiado dentro do campo de oposição simbólica entre o rural e o urbano. O pesquisador cita “Terra e Paixão”, exibido entre 2023 e 2024 na faixa das 21h, de Walcyr Carrasco, para enfatizar como a trama pautou um modelo rural contemporâneo centrado no agronegócio. “A produção traz elementos como picapes e tratores para o cenário, o que promove uma distância da visão idílica de um mundo rural idealizado”, diz.

Em novelas das 18h, a presença da cultura caipira é forte e apareceu em tramas com teor de alívio cômico, como em “Êta Mundo Bom!” (2016) – com previsão de estreia de sua sequência, “Êta Mundo Melhor!”, a partir de junho. O folhetim fazia homenagem ao mundo criado pelo ator Mazzaropi (1912-1981) e às radionovelas.

“Caipira picando fumo”, uma das famosas pinturas a óleo de moradores da zona rural feitas por Almeida Júnior — Foto: Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo
“Caipira picando fumo”, uma das famosas pinturas a óleo de moradores da zona rural feitas por Almeida Júnior — Foto: Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo

“Não é de hoje que o imaginário rural encanta o espectador brasileiro na TV aberta”, diz José Luiz Villamarim, diretor de gênero dramaturgia dos Estúdios Globo. “O público da TV aberta segue ávido por ver o Brasil profundo nas histórias, e nossas novelas buscam essa sintonia.”

Séries e filmes têm pautado esse mundo rural ligado ao progresso e à tecnologia. Nos cinemas, o longa “Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa”, do diretor Fernando Fraiha, recupera o universo criado pelo desenhista Mauricio de Sousa. É um projeto ambicioso de resgate da cultura caipira onipresente nas histórias em quadrinhos do personagem.

Já no streaming, o seriado “Rensga Hits!” (Globoplay) é um exemplo de ficção que acompanha os dramas de um grupo de mulheres envolvidas na música sertaneja, a indústria do “feminejo” – tendência popularizada nos últimos anos com a forte presença de duplas como Simone e Simaria.

Em um recente levantamento realizado pela Pro-Música, entidade dos produtores fonográficos, o sertanejo aparece como o gênero mais ouvido nas plataformas de streaming no Brasil em 2024, ocupando sete posições nos dez primeiros lugares do ranking. A pesquisa levou em conta os resultados obtidos pelas principais plataformas digitais, como Spotify e YouTube.

Embora o gênero retrate a vida rural muitas vezes pelo viés da prosperidade, demarcando as conquistas econômicas do sertanejo e a ostentação, estão presentes na composição dos hits elementos acústicos que evocam a música caipira de raiz, como a viola.

Luis Matuto e Bruno Brito, sócios do Arado: projetos pautados na iconografia do imaginário rural — Foto: Divulgação
Luis Matuto e Bruno Brito, sócios do Arado: projetos pautados na iconografia do imaginário rural — Foto: Divulgação

Para o produtor Mário de Almeida, a música é um forte canal para produções do gênero florescerem. “Quando a gente quer colocar a cultura caipira na tela, a gente não quer falar só do passado. A gente está falando de um Brasil caipira de hoje. Eu trabalhei particularmente em produções sobre violeiros e pude ver como o debate está vivo, não só no meio artístico, mas na própria universidade”, diz Almeida, que trabalhou no documentário “Levi Ramiro – Violeiro e Artesão” (2024, Prime Video).

Almeida cita a nova versão de “Pantanal” para mostrar como a viola se tornou um dos símbolos principais da cultura caipira. “Na refilmagem de ‘Pantanal’, o Gabriel Sater [filho do músico Almir Sater, que viveu o personagem Trindade em 1990] interagia com a viola. Havia cenas com roda de viola e muita gente que não conhecia o instrumento o descobriu. [Essa ênfase] foi mais forte do que na primeira versão. Acredito que houve uma abordagem mais didática que capturou as pessoas.”

Segundo Pinheiro, o núcleo caipira, em geral, é vinculado às pequenas propriedades, à convivência direta com animais e mostra seus personagens com roupas simples, desgastadas e amarronzadas. “Os homens vestiam calças pega-siri, com a barra curta, e as mulheres, vestidos de chita”, diz. A imagem do caipira carregada de trejeitos serviu por muito tempo para atestar a simplicidade do modo de vida no campo e ficou calcada no imaginário brasileiro.

Em cartaz até abril na Pinacoteca do Estado de São Paulo, a mostra “Caipiras: Das derrubadas à saudade” explora essa figura, partindo das famosas pinturas a óleo de moradores da zona rural feitas por Almeida Júnior (1850-1899).

“Elas foram pintadas na busca de um homem ancestral para os paulistas, que conciliasse a elite com as classes populares”, diz o curador Yuri Quevedo. “O curioso é perceber que, apesar do esforço modernizador, a representação do caipira foi pensada como imagem do passado do século XIX, mas ainda hoje, no século XXI, é considerada como passado recente.”

O meio rural sempre foi um centro de poder no Brasil e continua forte na “era do agro”, diz Thomaz Amâncio  — Foto: John Zich/Divulgação
O meio rural sempre foi um centro de poder no Brasil e continua forte na “era do agro”, diz Thomaz Amâncio — Foto: John Zich/Divulgação

Segundo Quevedo, é comum ouvir do público do museu que essas figuras representam seus antepassados ou a época da infância. “Os caipiras, seu modo de vida ligado à terra e sua desvalorização sistemática, são assuntos do nosso tempo”, diz.

“Se a gente pensar que, há mais de um século, elas foram feitas para representar um modo de vida que deveria desaparecer com o esforço modernizador e, até hoje, as pessoas se reconhecem nele, esses caipiras podem ser vistos como imagens de resistência.”

Para Luiz Antonio Guerra, sociólogo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano (IFG), a cultura caipira é um dos pilares da formação da cultura brasileira e tem influenciado cada vez mais as novas gerações. “A infância, para grande parte da população brasileira, remete à roça. Pode até ser um lugar que talvez não tenha existido com todas as características típicas, mas é um símbolo de afeto que evoca tempos mais simples”, diz.

Em uma sociedade marcada pela cacofonia digital e pelos constantes estímulos, surge um cenário de incertezas em que a busca por uma identidade se torna essencial. “Consumir essa identidade caipira é uma forma de reatar laços perdidos no passado familiar. Com a globalização, o conhecimento se expandiu, as fronteiras se abriram, mas também houve a necessidade de se olhar para dentro, identificar e agarrar o que é nosso, o que simboliza nossa cultura mais autêntica”, diz o sociólogo.

Guerra vê hoje um movimento contrário ao que ocorreu na época dos avós, marcada pelo forte êxodo rural brasileiro na década de 1960. “A partir da pandemia, vi um movimento forte de gente se estabelecer no interior em busca de melhor qualidade de vida. Foi uma virada. Nas grandes cidades, há uma institucionalização da impessoalidade e os laços se perdem com facilidade.”

O sociólogo explica que, historicamente, houve um deslocamento semântico do termo “caipira”, que passou a representar uma identidade cultural em vez de um tipo humano específico. “Até a década de 1960, o Brasil era mais rural do que urbano, depois houve uma desarticulação material da cultura caipira por meio do êxodo rural. Aí se criou uma imagem negativa do homem do campo, que passou a ser representado como o personagem Jeca Tatu do Monteiro Lobato, um exemplo do ‘atraso’.”

Guerra afirma que os elementos dessa cultura rural, trazidos pelos descendentes dos que abandonaram o campo, moldaram práticas e valores urbanos em capitais como São Paulo. Nesse processo de ressignificação do caipira, algumas lendas surgiram para mitificar ainda mais o estereótipo do interiorano. “A figura do caubói norte-americano, com botas de couro, chapéu de abas largas e jeans, é muito presente e nada tem a ver com a imagem do caipira que aqui se criou”, diz.

“A infância, para grande parte da população brasileira, remete à roça”, diz Luiz Antonio Guerra — Foto: Divulgação
“A infância, para grande parte da população brasileira, remete à roça”, diz Luiz Antonio Guerra — Foto: Divulgação

As imagens que fazem referências a um mundo rural antigo e tipicamente brasileiro ganham novas versões em diferentes meios. Para além das belas-artes, estúdios de design como Café Coado e Arado têm atraído olhares para seus trabalhos por conta da presença digital em plataformas como o Instagram. Em uma das postagens do Arado, por exemplo, um galo rubro cacareja em direção ao leste, onde nasce o Sol, e evoca na memória o ruído da ave que despertava os trabalhadores do campo.

O pôster é um dos mais vendidos do Arado, estúdio criado em 2018 pelo pesquisador Bruno Brito para dar vazão a projetos pautados na iconografia do imaginário rural brasileiro. Brito pesquisou o tema na pós-graduação na Unesp e criou, em paralelo ao estúdio, o Instituto Arado, que atua como repositório científico digitalizando publicações históricas sobre a cultura caipira característica do interior dos estados de São Paulo e Minas Gerais.

“O Arado é um projeto híbrido, por isso temos duas frentes. A gente coloca na gaveta do instituto os projetos mais teóricos, ligados à investigação da cultura. Paralelamente, o instituto dá insumos para o estúdio criativo, que se beneficia da pesquisa, dos livros antigos, dos objetos de época que compramos. São dois núcleos que andam juntos”, diz Brito.

Com premiações no Brasil e no exterior, como na última edição da Bienal Iberoamericana de Diseño, em Madri, na Espanha, e no Brasil Design Award (2022), a marca tem apostado na confecção analógica das peças, feitas em máquinas offset da década de 1960.

As referências do designer são anúncios publicitários, jornais, livros e revistas dos anos 1950 e 1960. “Eu me interesso pela cultura material, pelos objetos, pelos modos de fazer que foram esquecidos quando a sociedade se informatizou.”

O estúdio atua em uma zona limítrofe partindo de referências antigas para dialogar com um público majoritariamente jovem e com forte presença digital. “Nós criamos coisas parecidas com as que existiram em algum lugar do passado. Essa é a fórmula de sucesso.”

Brito também usa o espaço conquistado pelo seu projeto em feiras e programações de centros culturais para discutir a preservação do modo de vida rural. No ano passado, o Arado organizou, em parceria com o café Tem Umami, a segunda edição da Festa Junina do Copan, nas dependências do edifício histórico do centro de São Paulo.

Já na última edição da Festa Literária Internacional, a Flip, discutiu-se o imaginário popular brasileiro em palestras organizadas em parceria com o Sesc local. “A presença em eventos é uma forma de expandir o design e a pesquisa para além do conteúdo. O trabalho do estúdio está intimamente ligado ao trabalho institucional. Se comunicar com o público instiga a gente a criar soluções, formatos e suportes para trazer esse imaginário caipira”, diz Brito.

Fonte: Externa

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