A eventual aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que inviabiliza a realização do aborto legal no Brasil pode representar um retrocesso e deve ter um impacto maior em crianças e jovens vítimas de violência sexual, segundo especialistas ouvidos pelo Valor.
Na quarta-feira (27), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou uma PEC que proíbe o aborto no país, e, na prática, barra o procedimento mesmo nos três casos permitidos pela legislação — anencefalia fetal, gravidez decorrente de estupro e gravidez que traz risco à vida da gestante. O texto ainda precisa ser debatido em comissão especial e ser aprovado pelos plenários da Câmara e do Senado, com pelo menos dois terços dos parlamentares, para ser viabilizado.
Professora de direito constitucional da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta, que defende direitos de crianças e adolescente, Luciana Temer classifica a proposta como um retrocesso e afirma que as permissões para o aborto no país estão previstas desde que o Código Penal entrou em vigor, em 1940.
“O que a gente está falando aqui no Brasil [proibição do aborto legal] é muito grave. Não é um ponto de vista. Eu digo que é um retrocesso porque o Brasil permite isso desde 1940. Então estamos falando de um retrocesso para antes de 1940”, afirma a professora de direito constitucional e ex-secretária municipal.
A proposta, de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (Republicanos-RJ), é de 2012 e tenta mudar o artigo 5° da Constituição Federal para incluir fetos nos sujeitos detentores de direito à vida, o que tornaria inconstitucional o aborto, mesmo nos casos permitidos por lei.
“A vida não se inicia com o nascimento e sim com a concepção. Na medida desse conceito, as garantias da inviolabilidade do direito à vida têm que ser estendidas aos fetos”, diz o texto de Cunha.
Segundo Luciana Temer, na Constituição de 1988 não se adicionou o termo “desde a concepção” para não inviabilizar as hipóteses de aborto legal que já eram permitidas naquele momento.
A legislação brasileira não define quando se inicia a vida, especialmente pela própria ciência não ter uma resposta unânime para essa questão, afirma Vivianne Ferreira, professora de direito da FGV-SP.
O direito à vida, assim como os outros direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, não é absoluto. Como exemplo disso, diz a professora, está a previsão de legítima defesa no Código Penal. “Você pode tirar a vida de alguém em legítima defesa e isso não é considerado um crime”, explica Ferreira.
Crianças serão mais prejudicadas
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, a quantidade de vítimas de estupro e estupro de vulnerável cresceu 91,5% nos últimos 13 anos no Brasil. O número bateu recorde em 2023, saindo de 78.887 em 2022 para 83.988. Só no ano passado, foi registrado um estupro a cada seis minutos no país. Entre as vítimas, 77,6% são menores de idade, e 61,6% têm entre 0 e 13 anos.
Diante dessa realidade, Juliana Martins, coordenadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acredita que a PEC pode trazer mais vulnerabilidade à vida de mulheres e meninas que passaram por episódios de violência sexual.
“Se já é muito difícil para uma mulher adulta enfrentar todas as questões relacionadas a uma gravidez decorrente de um estupro, quem dirá para uma menina. E em vez de a gente falar sobre como proteger essas meninas, estamos falando em como abandoná-las à própria sorte no caso de uma violência. Não estamos garantindo o direito à infância, à uma vida plena, segura, saudável”, disse.
Para Juliana, a aprovação definitiva do texto pode fazer com que as vítimas se sintam menos confortáveis em registrar denúncias.
“Se a política vai no caminho de criminalizar e de vulnerabilizar ainda mais essas vítimas, como é que elas vão confiar na justiça? Como elas vão confiar que podem falar sobre essas violências? E aí a gente empurra elas para a marginalidade do sistema de saúde. Com essa aprovação, nós não estamos protegendo a vida, pelo contrário”, afirmou.
Luciana Temer reforça: “Quando a menina é vítima de estupro e engravida, tem um ciclo de violência que não se rompe, porque essa menina não vai se qualificar e nem entrar no mercado de trabalho. Também poderá ficar submetida à exploração sexual e à violência doméstica”.
Helena Paro, médica ginecologista, professora universitária e integrante da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Doctors for Choice Brasil), explica que crianças têm mais risco de morrer durante a gravidez do que gestantes entre 20 e 29 anos de idade.
“Nós já temos no nosso país mulheres e crianças que morrem em decorrência da gravidez por não terem acesso ao aborto legal nos casos de risco à vida. A criminalização do aborto no Brasil é responsável por meio milhão de abortos clandestinos por ano. Em 2020, no SUS, foram 200 mil internações por abortos incompletos, provavelmente a maior parte deles clandestinos. A proibição total do aborto significa deixar essas pessoas ainda mais vulneráveis à clandestinidade, sobretudo as mulheres pobres, pretas e pardas, que moram longe dos centros urbanos”, afirma a professora. Ela cita dados do artigo “Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?”, publicado em 2020 nos Cadernos de Saúde Pública.
A médica explica ainda que ao considerar o óvulo fecundado digno de direitos, se proíbe todas as técnicas de reprodução assistida, incluindo a fertilização in vitro, que congela embriões, e descarta aqueles não utilizados. Da mesma forma, a utilização desses embriões para a pesquisa científica também seria impedida.
“Esse texto é totalmente contrário às evidências científicas, que não determinam o início da vida humana na concepção. O único marco que pode definir o início de uma vida humana com direitos é o nascimento com vida”, afirma Helena Paro.
Na avaliação de especialistas, a PEC é mais grave do que o projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas ao homicídio.
Em junho, a votação do Projeto de Lei (PL) 1904/24 causou polêmica ao propor a detenção de seis a 20 anos às mulheres que interrompessem a gravidez após 22 semanas nas condições previstas em lei. A pena seria igual ou superior à dos estupradores, visto que a pena para esse tipo de crime varia de 10 a 20 anos nos casos em que não há morte da vítima.
O projeto, por sua vez, também estabelecia uma pena ao médico ou outra pessoa envolvida na interrupção do procedimento com o consentimento da gestante. Em ambos os casos, a reclusão poderia ser de um a quatro anos. Nos casos em que o aborto fosse feito sem o consentimento da mulher, a pena poderia ser de três a 10 anos de prisão.
Após a forte repercussão contrária e protestos populares, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), segurou a tramitação da proposta.
Na avaliação de Luciana Temer, a PEC 164/12 é ainda mais grave do que a do PL, já que, ao contrário da primeira proposta, a aprovada na CCJ acaba com qualquer possibilidade de aborto legal. “Essas pautas implicam em retrocessos importantes e que não estão tendo a atenção necessária”.
Em junho, mesmo mês em que a discussão daquele projeto gerou polêmica, uma pesquisa do Instituto Datafolha apontou que a proposta era rejeitada por 66% dos brasileiros. Outros 29% dos entrevistados foram favoráveis, 2% disseram ser indiferentes e 4% não souberam responder.
A pesquisa destaca, entretanto, que menos de 10% dos brasileiros são favoráveis que o aborto seja permitido em todos os casos. Dos entrevistados, 34% sinalizaram que a lei deve continuar como é hoje; 17% defenderam que seja permitido em mais situações do que as previstas atualmente. Outros 7% são a favor da permissão em todos os casos.
Por fim, 38% disseram que o aborto deve ser proibido em qualquer situação, enquanto 1% afirmou que deve ser permitido em certas situações, sem especificar quais; 1% deu outras respostas e 2% não souberam responder. Ao todo, foram ouvidas 2.021 pessoas entre os dias 17 e 19 de junho. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
*Sob supervisão de Fernanda Godoy