Em um dos mais tradicionais polos da indústria dos EUA, o debate sobre transição energética e o futuro dos empregos está influenciando a decisão de parte dos eleitores na disputa presidencial deste ano.
O debate é sobre a mudança do perfil da indústria de automóveis movidos a gasolina para automóveis elétricos. Nas eleições presidenciais deste ano, o ex-presidente e candidato do Partido Republicano, Donald Trump, faz a defesa da indústria do petróleo e dos motores a combustão; a vice-presidente e candidata do Partido Democrata, Kamala Harris, tem atuado em favor de medidas que reduzem emissões de gases-estufa.
O tema mexe com Estados onde montadoras de carros a combustão e seus fornecedores mantêm grandes fábricas e milhares de empregos. São Estados como Alabama, Arizona, Michigan, Nevada, Ohio, Tennessee, entre outros. À exceção do Arizona e de Michigan (governados pelo Partido Democrata), os demais são republicanos.
Queremos estar atualizados com a tecnologia, mas sem perder nossos empregos”
— Joseph Losier
De todos, Michigan é o mais significativo. Aqui estão as monumentais fábricas das chamadas Big Three: General Motors, Ford e Chrysler (parte do grupo franco-ítalo-americano Stellantis).
Michigan também é chave para as eleições presidenciais de 5 novembro porque é um dos poucos Estados-pêndulo do país, ou seja, onde nas últimas eleições o voto foi ora para o Partido Republicano ora para o Partido Democrata. É um dos palcos mais acirrados da disputa entre Trump e Kamala.
O setor emprega cerca de 700 mil pessoas no Estado. As empresas estão concentradas em Detroit e região. A cidade tem um apelido antigo de “Motor City”.
A questão é o que será das fábricas de veículos com motor a combustão quando os carros elétricos tiverem mais mercado e mais estímulos do governo? O que será da mão de obra treinada por anos para fazer os carros tradicionais? E qual será o impacto diante de uma eventual concorrência com a China pelos elétricos? Para muitos trabalhadores, a dúvida é quantos deles terão espaço – e treinamento – para se manterem no ramo quando a eletrificação ganhar corpo.
“Com certeza isso é uma preocupação”, disse ao Valor Joseph Losier, de 45 anos, membro do influente sindicato que reúne parte dos trabalhadores do setor, o United Automobile Workers (UAW).
“Queremos nos manter atualizados com a tecnologia e com as demandas dos clientes, mas não queremos perder nenhum emprego. É um equilíbrio delicado.” Para especialistas, no entanto, diante da urgência para reduzir emissões no setor de transporte, a eletrificação dos veículos é inevitável.
Funcionário da Chrysler/Stellantis por 20 anos, Losier conta que é parte da terceira geração da família que fez carreira montando automóveis no Estado. Atualmente, é um dos dirigentes do UAW e um dos responsáveis pelos programas de ações junto à comunidade.
Trump foi até agora quem mais buscou explorar os veículos elétricos de maneira negativa. Em julho, no discurso de encerramento da convenção nacional de seu partido, ele declarou: “Vou acabar com a obrigatoriedade de veículos elétricos no primeiro dia [de um eventual segundo mandato]. Assim, vou salvar o setor automobilístico dos EUA de uma completa destruição, que está acontecendo agora, e economizarei milhares e milhares de dólares por carro para os consumidores dos EUA.”
Ele se referia a uma regulamentação anunciada no início do ano para automóveis e picapes. Pelas regras, 56% dos novos veículos terão de ser elétricos em 2032. Outros 13% terão de ser híbridos. No ano passado, mesmo com vendas recordes, os elétricos representaram 7,6% do mercado americano.
Do ponto de vista climático, não há dúvidas: a medida vai na direção certa para reduzir as emissões de gases que provocam efeito estufa. O setor de transporte é o responsável pela maior parte das emissões americanas. Juntos, China e EUA respondem por 45% das emissões do mundo causadas por queima de combustível, segundo a Agência Internacional de Energia.
Mas parte dos consumidores americanos viu a nova regra com antipatia alegando que os elétricos são mais caros e que serão obrigados a gastar mais em função das metas desenhadas pelo governo e pela Agência de Proteção Ambiental (EPA na sigla em inglês). É um dos argumentos de Trump e de seu companheiro de chapa J.D. Vance.
Kamala trabalhou a favor da Inflation Reduction Act, lei patrocinada pelo governo Biden que concede amplos incentivos federais para o aumento da produção de carros elétricos e de projetos de geração de energia solar, eólica e de outras fontes renováveis. Também apoiou um projeto aprovado por democratas e republicanos – e sancionado por Biden – para ampliação de estações de carregamento de baterias de carros elétricos. Biden aprovou ainda lei que garante US$ 39 bilhões em incentivos para produção nos EUA de semicondutores, importantes nos elétricos. O mundo depende fortemente da China como fonte de fornecimento desses chips.
Kamala já indicou que, se eleita, manterá apoio às medidas de Biden. Mas no caso dos elétricos, ela ainda não deixou totalmente claro se vai manter a regulamentação do atual governo ou se vai flexibilizar as metas de eletrificação.
Em 2019, como senadora, Kamala apoiou um projeto que previa que em 2035 todos os carros fabricados nos EUA teriam de ser elétricos ou a hidrogênio.
Num ano de eleições, o setor de petróleo banca campanhas de rádio e TV para fustigar Kamala. Em anúncios de rádio e TV em alguns Estados, entre eles Michigan, a campanha diz: “Talvez haja alguém novo na direção, mas o destino é ainda o mesmo: proibir a maior parte da produção de carros a gasolina”.
Trump voltou ao assunto em entrevistas e discursos, embora após o apoio de Elon Musk (fundador da Tesla, líder americana de elétricos) passou a relativizar as críticas.
Mesmo assim, suas posições sobre os impactos dos elétricos nos empregos parece seguir ressoando nos Estados mais dependentes da indústria tradicional de automóveis, como Michigan. “Trump transformou essa questão em um divisor de águas. Acho que a questão dos elétricos é um problema para uma parte dos trabalhadores porque eles acham que perderão seus empregos”, diz Losier.
Há alguns cenários na mesa. Um deles é que muitas atividades atuais na cadeia automotiva serão extintas dando lugar a novas. Em Michigan, por exemplo, projetos de produção de baterias de cinco empresas estão em andamento e já receberam subsídios da ordem de US$ 1 bilhão. Um balanço recente apontou que os projetos, quando prontos, criarão cerca de 10,5 mil novos empregos. As previsões anteriores eram de 12 mil.
Mas há também um cenário que leva em conta o fato de os elétricos terem muito menos peças e que isso poderá levar a uma demanda de menos mão de obra.
A palavra de ordem entre os sindicalistas quando tratam do tema é “transição justa”. É também a expressão usada pelo atual governo democrata.
Don Grimes, pesquisador sênior do Instituto de Trabalho, Emprego e Economia da Universidade de Michigan, avalia que por mais ou menos 10 anos a tendência será de empresas ampliarem sua produção de veículos elétricos mantendo parte da produção dos veículos a combustão. E, então, a partir de 2033 o cenário da indústria e do emprego automotivo começaria a mudar mais significativamente.
Mas há outra questão que, para ele, é a mais importante para Michigan e para as famílias que dependem do negócio dos automóveis. “A verdadeira questão é: as empresas que estão aqui sobreviverão? Esse é um risco muito maior para Michigan, e também é uma possibilidade real de que elas não sobrevivam. Novas empresas, como a Tesla, estão crescendo. Eles já estão vendendo um milhão de veículos. Além disso, a China vai acabar em algum momento vendendo carros nos Estados Unidos e em outros lugares. E vai conquistar uma fatia de mercado das empresas automotivas existentes”.
Chrysler, Ford e GM têm linhas de carros elétricos no mercado, mas os programas das empresas para treinarem funcionários que operam as linhas convencionais estão ainda no começo. E no UAW há ainda mais perguntas do que respostas sobre quem financiará esse treinamento. O governo vai subsidiar esse treinamento? Será totalmente pago pelas empresas?
Além de ser um palco central da indústria de carros dos EUA, Michigan é estratégico para os dois candidatos porque, diferentemente, da maioria dos Estados, aqui os ventos eleitores variaram recentemente. Em 2016, Trump ganhou em Michigan; em 2020, Biden.
Apesar de tecnicamente empatados, Kamala mantém uma leve vantagem numérica. Segundo o agregador de pesquisas 538, a última sondagem feita entre 15 e 18 de setembro, pelo Emerson College, a democrata tinha 50% das intenções de voto; Trump 49%. A favor de Kamala há o fato de a governadora ser uma nova estrela do Partido Democrata, Gretchen Withmer. Além disso, o influente UAW formalizou seu apoio à democrata, dizendo que ela e seu candidato a vice Tim Walz estiveram ao lado de pautas trabalhistas ao longo de anos. Na campanha, Kamala já esteve algumas vezes em Michigan. Trump também tem agendas no Estado e conta com o apoio organizado de parte dos trabalhadores sindicalizados.
Na manhã ensolarada de sábado, 14 de setembro, o Valor viu uma pequena amostra dessa divisão entre eleitores. Ao lado de quatro sindicalistas do UAW, a reportagem visitou uma área residencial nos arredores de Detroit. O grupo tinha a tarefa de bater de porta em porta e buscar convencer os moradores a votar em Kamala. Uma tarefa apelidada de GOTV, “get out to vote” (vá votar). Todos usavam camiseta vermelha com a frase “Trump is a scab [algo como pelego, fura-greve]. Vote Harris”. O local escolhido pelo grupo foi uma área de casas térreas, com gramados em frente e sem muros onde vivem muitos funcionários da indústria de automóveis. Estacionados nas ruas, ou embicados diante do portões das garagens estavam SUVs e outros modelos. Todos “Made in USA” e todos a gasolina.
A paisagem não era favorável ao grupo. Várias casas exibiam plaquinhas de Trump fincadas na grama. “Foram educados, mas disseram que não querem falar sobre eleições”, disse um deles logo após conversar com um dos moradores. Foram respostas parecidas que o grupo ouviu nas primeiras casas que visitaram. Numa disputa tão apertada como a deste ano e num Estado-pêndulo, sindicalistas dos dois lados consideram esse corpo a corpo um momento chave de sua colaboração.
Na convenção republicana, Sean O’Brien, presidente do sindicato que reúne caminhoneiros americanos, subiu ao palco para empenhar o apoio da categoria a Trump. Na convenção democrata foi a vez de Shawn Fain, presidente do UAW, dizer que sua categoria apoiava Kamala.
Vários temas dividem eleitores da classe trabalhadora. De um jeito meio caricato, Joseph Losier resume as divergências em três palavras. “Eu costumo chamar de três Gs: guns, god, gays”, diz ele. Republicanos, em geral são pró-armas; têm posições que levam em conta questões de fé cristã, o que nestas eleições, têm muito a ver com regras mais rígidas sobre aborto. Republicanos também são mais conservadores e resistentes a iniciativas voltadas a homossexuais.
Don Grimes dá como certo que em Detroit, Kamala vencerá por uma grande margem. E que o UAW fará diferença em prol da democrata. Mas diz que este ano um fantasma rondará as urnas. “A maioria dos membros do UAW provavelmente votará em Kamala para presidente, mas não tanto quanto no passado já votaram em outros democratas. E acho que parte disso se deve ao fato de todos estarem preocupados com os veículos elétricos.”