Em meio à exacerbada tensão geopolítica entre o Ocidente e Moscou, militares da Rússia passaram a operar em uma base ainda ocupada por soldados americanos na capital do Níger, país do centro da África que passou por um golpe militar no ano passado.
O risco de alguma altercação entre os militares parece baixo. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, apenas disse que seu país tem forças em diversas nações da África, sempre trabalhando em cooperação com os governos locais.
Isso era feito principalmente pelo grupo mercenário Wagner, que foi desmantelado no ano passado após seu líder, Ievguêni Prigojin, tentar um golpe contra a cúpula militar russa, insatisfeito com a perda de controle sobre seus negócios apesar de seu papel na Guerra da Ucrânia.
O golpe não veio, e Prigojin, que foi muito próximo do presidente Vladimir Putin, acabou morto dois meses depois em um aparente atentado contra seu avião perto de Moscou.
O caso do Níger é emblemático da nova configuração geopolítica da região conhecida como Sahel, a faixa que divide a África subsaariana da porção árabe ao norte do continente. Até aqui, países da região trabalhavam com EUA e França, antiga potência colonial por lá, para combater o terrorismo islâmico endêmico na área.
Nos últimos cinco anos, seis países da região passaram por golpes de Estado, três deles com duas rodadas de sublevação. O do Níger azedou de vez a relação com os franceses e americanos, que foram convidados a sair do país. Com a demora, a junta militar determinou a expulsão das forças estrangeiras no mês passado.
Ao mesmo tempo, recebeu o que inicialmente seriam consultores militares russos, mas analistas acreditam ser antigos mercenários do Wagner sob contrato do Ministério da Defesa. Não se sabe quantos: alguns relatos falam em ao menos 60, outros em bem mais. Durante o golpe, manifestantes gritavam “viva Putin” em atos de rua.
Os EUA estavam no Níger havia 11 anos. Além da base da Força Aérea local em que operam na capital, Niamey, construíram uma grande pista para operação de drones a 750 quilômetros dali, em Agadez. Havia no país mil militares americanos, e não se sabe quantos ainda estão presentes.
A partir da instalação para drones, conhecida como Base Aérea 201, os EUA atacavam posições de grupos terroristas como o Estado Islâmico e o Boko Haram em toda a região. Agora Washington procura um novo parceiro regional, e enviou seu comandante militar para a África para conversas no Benin.
Forças americanas já deixaram o Chade nas últimas semanas, e Paris teve seus militares expulsos também no Mali e em Burkina Fasso.
O entrechoque com os russos ocorre no pior momento, desde a Guerra Fria, de relação entre as duas maiores potências nucleares do mundo, decorrente da invasão da Ucrânia em 2022.
Em mais um capítulo dessa disputa com EUA e seus aliados, a Rússia aumentou as críticas ao apoio do Reino Unido à resistência da Ucrânia.
Na véspera, o chanceler britânico, David Cameron, havia dito que a ajuda anual equivalente a R$ 19 bilhões a Kiev valeria pelo tempo que a guerra durasse. Foi além, afirmando que armas britânicas podem ser usadas contra o território russo, rompendo uma linha vermelha autoimposta pelos EUA e seus aliados desde o começo da guerra.
O presidente americano, Joe Biden, disse várias vezes que não poderia arriscar a Terceira Guerra Mundial fornecendo armas ofensivas que pudessem atingir a Rússia. Desde que foi colocada na defensiva e passou a sofrer perdas territoriais renovadas, neste ano, a Ucrânia tem apostado em ataques assimétricos contra alvos do vizinho, como refinarias.
Aviões militares russos também foram abatidos no espaço aéreo do país, mas até aqui Kiev diz ter usado apenas armamentos próprios. Londres forneceu aos ucranianos uma de suas mais importantes armas até aqui no conflito, o míssil de cruzeiro furtivo Storm Shadow.
Especula-se que eles possam ser utilizados para um ataque contra a ponte da Crimeia, obra que simboliza a absorção da península realizada por Putin em 2014. A porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakharova, afirmou que Cameron admitiu na prática estar em guerra com Moscou usando “as mãos ucranianas”.
Ela afirmou que “qualquer ataque contra a Crimeia será respondido com uma vingança devastadora” pelos russos, sem especificar se poderia mirar alvos britânicos, uma escalada enorme no conflito.
Até aqui, a França era o país que mais ensaiava uma mudança de patamar no conflito, com o presidente Emmanuel Macron dizendo ser possível enviar forças para a Ucrânia. Putin respondeu que, se isso ocorrer, a Otan (aliança militar ocidental) estará arriscando uma guerra nuclear.