Dos cerca de 9 mil itens presenteados ao então presidente Jair Bolsonaro, apenas 55 foram classificados como acervo público, informou em depoimento a ex-coordenadora do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, Marjorie de Freitas Guedes em depoimento à Polícia Federal (PF), na investigação sobre o desvio de joias recebidas como presente.
Na visão da PF, esse fato demonstra a “atuação desgarrada do interesse público” no Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) do Palácio do Planalto, comandado à época por Marcelo da Silva Vieira.
O relatório da PF acrescenta que a atuação “dolosa” de Vieira “foi elemento preponderante” para permitir que o então presidente Jair Bolsonaro obtivesse êxito na primeira etapa da empreitada criminosa, descortinada na presente investigação, consistente no desvio de bens de alto valor patrimonial do acervo público brasileiro, presentados por autoridades estrangeira. “Esses bens foram posteriormente vendidos “de forma escamoteada” e os recursos em espécie, “reintegrados, com aparência lícita, ao patrimônio do ex-presidente”.
O relatório afirma que a estrutura do GADH foi usada para “legalizar” os bens recebidos como presente e incorporados ao acervo privado de Bolsonaro.
Conversa por WhatsApp obtida na investigação mostra que Vieira usava como critério, para incorporação de bens recebidos como presente ao patrimônio público, o desejo do então presidente.
“Se esse material, o PR prefere, é uma coisa as vezes de uso, que ele vai querer usar na vida cotidiana dele, ele não quer que componha o acervo privado do Presidente, você pode guardar lá, só que isso não dá entrada oficialmente”, diz ele em conversa com Francisco de Assis Lima Castelo Branco, que ocupava cargo no setor de coordenação administrativa do Palácio da Alvorada. Os dois falavam sobre a destinação de um conjunto de facas presenteado a Bolsonaro.
Nessa conversa, Vieira acrescenta que é preciso ter atenção às circunstâncias em que o presente foi recebido: se foi numa cerimônia pública, se havia imprensa, se foi registrado em vídeo. “Então tem que ter todo um cuidado pra que a gente não exponha o Presidente da República, porque amanhã depois chega a LAI, Lei de Acesso à Informação, eles pedem a lista de presentes do Presidente, aí, não consta, por exemplo, essa faca.”
Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu um acórdão segundo o qual todos os presentes recebidos nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de Estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil seriam incorporados ao acervo público brasileiro, excetuando-se os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto do presidente da República.
No entanto, diz o relatório, “o GADH atribuiu presentes de altíssimo valor, dados por autoridades estrangeiras, ao acervo privado do presidente da República, adotando uma interpretação que contraria os princípios que regem a Administração Pública e a teleologia do acórdão proferido pelo TCU.”
Esse entendimento, avalia a PF, “além de chancelar um enriquecimento inadmissível pelo Presidente da República, pelo simples fato de exercer uma função pública, proporciona a possibilidade de cooptação do chefe de Estado brasileiro, por nações estrangeiras, mediante o recebimento de bens de vultosos valores”.
O relatório diz que há elementos de prova que demonstram a existência de uma “estrutura para desviar os bens de alto valor presenteados por autoridades estrangeiras ao ex-presidente da República, para serem posteriormente evadidos do Brasil, por meio de aeronaves da Força Aérea Brasileira, e vendidos nos Estados Unidos”.
A defesa do ex-presidente ainda não se manifestou sobre o teor do relatório. Em manifestações anteriores, os advogados afirmavam que Bolsonaro nunca recebeu valores nem autorizou a venda de presentes recebidos e acrescentavam que os itens mantidos pelo ex-presidente estavam em acordo com a legislação vigente.