Eventos climáticos extremos, como enchentes e inundações, devem se tornar cada vez mais frequentes com o passar dos anos devido às mudanças climáticas. E para mitigar os efeitos desses fenômenos, muitas vezes devastadores, como no caso das chuvas do Rio Grande do Sul, é preciso melhorar o planejamento das cidades com técnicas que considerem essas alterações, como o modelo de cidades-esponja, criado na China. A técnica, porém, deve ser adaptada à realidade local, segundo especialistas ouvidos pelo Valor.
O conceito de cidades-esponja surgiu na China, que vem aplicando a metodologia criada pelo arquiteto paisagista Kongjian Yu há 10 anos. O método consiste em planejar uma cidade para que consiga lidar com o excedente das águas, ao filtrar o excesso.
Yu, criador do conceito, morava em uma pequena vila próxima a um rio chinês, em uma área afetada por monções, que sempre inundava após as chuvas de verão e causava perda de parte da agricultura. Os monções são ventos sazonais que alteram sua direção de costume, direcionando para uma localidade específica e que é afetada com chuvas intensas.
Com isso, Yu resolveu utilizar a vegetação para amenizar o problema. O termo parte do princípio de que a natureza regula a água.
Como funcionam as cidades-esponja?
O processo de esponja é algo natural. Segundo Julio Cesar da Silva, professor de Engenharia Civil da UERJ e com pesquisas na área de redução de riscos e desastres, a natureza já escolhe locais que são alagáveis, onde o rio vai correr mais rápido ou mais lento.
A ideia das cidades-esponja é fazer com que o ambiente construído (o urbano) seja o mais parecido com o sistema natural, do ponto de vista da capacidade de absorção, retenção e liberação de água.
A técnica de Kongjian funciona criando um balanço hídrico artificial. O balanço já é feito pela natureza e consiste na entrada e a saída das águas do solo. Nesse processo, parte da água das chuvas infiltra, parte evapora, parte transpira e parte escoa. O último é o principal responsável por alagamentos e inundações porque não há capacidade de escoamento de grandes volumes.
Com as cidades-esponja, o que se faz é absorver parte dessa água através de infiltração ou através de amortecimentos. Nos casos de infiltração, podem ser feitas caixas infiltrantes, que facilitam a entrada da água no solo, mas que dependem do nível do lençol freático da localidade.
Já no amortecimento, o método pode ser utilizado com construção de bacias de detenção, que retêm a água antes do local que deve ser protegido. Isso faz com que a água chegue até o ponto de proteção de forma mais lenta.
No método são utilizadas plantas que absorvem água, para dar conta do alto volume de chuvas. Elas são usadas em espaços ao redor de rios, em parques e praças, para funcionar como área de espalhamento e retenção das águas.
O modelo é diferente do convencional, utilizado na maior parte do Brasil, que canaliza a água e que não é considerado efetivo porque conduz as águas através de tubulações e redes impermeáveis.
Isso porque as tubulações acabam sendo limitadas, já que não conseguem acomodar o excesso das águas que pode variar, sobretudo com chuvas mais intensas devido à crise climática, de acordo com o Paulo Pellegrino, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisador do LABVERDE, laboratório que pesquisa e avalia projetos de adaptação e mitigação climática e infraestrutura verde.
Modelo pode ser aplicado no Brasil?
Assim como o Rio Grande do Sul, o Maranhão, por exemplo, também está sofrendo com fortes chuvas. Mas enchentes e inundações não são novidades no Brasil, a exemplo das fortes chuvas em Recife, capital pernambucana, em 2022, que deixaram mais de 100 mortos. A forma de lidar com elas, porém, pode ser algo inédito, com a adaptação das cidades-esponja a partir do panorama local.
A técnica poderia ser utilizada no estado e na capital gaúcha, mas precisaria ser adequada à realidade de uma localidade que já é urbanizada, dizem os especialistas ouvidos pelo Valor.
Na situação atual de Porto Alegre, há agravamento por causa das características que fazem com que a chuva tenha um impacto maior na localidade: parte do território é plano, abaixo de três metros acima do nível do mar, além de pouca presença de matas nativas, estimadas em 7%, que poderiam ajudar a drenar parte do excedente das chuvas.
A água na capital gaúcha continua acumulada na cidade por causa do Rio Guaíba, que recebe água de outros rios e não consegue escoar para o oceano pela passagem que liga o rio ao mar pelo Molhes da Barra, uma estrutura constituída por dois quebra-mares construídos com gigantescas pedras e que servem para dar segurança à navegação.
Por isso, para que o modelo seja aplicado no Rio Grande do Sul como um todo, mas principalmente em Porto Alegre, explica Pellegrino, é preciso um recenseamento topográfico da área e realização de plantios de vegetações que “gostam” de água.
Também é preciso refazer espaços para receber essas águas da chuva através do solo, da vegetação e da formação do relevo, para serem liberadas depois com mais “sossego” e com menos força, como aconteceu no transbordamento de rios gaúchos, em que carros foram arrastados pela correnteza.
O primeiro passo para implantar o modelo no estado, diz Pellegrino, seria parar de canalizar os rios e recuperar o que “já foi estragado”, com um retrabalho nas áreas afetadas. O que não seria difícil já que o clima brasileiro propicia um crescimento rápido vegetação.
“Essas plantas fazem uma filtragem, retirando o excesso em caso de enchentes e inundações e purificando para as águas ficarem limpas novamente. Essa água, após isso, teria dois caminhos: seria evaporada ou seria liberada aos poucos”, explica.
Na capital, porém, a técnica precisaria ser adaptada à urbanização. Isso porque, por ser uma cidade populosa, precisaria de um trabalho para identificar áreas desocupadas para dar espaço para a criação de parques alagáveis e retenção das águas, explica Pellegrino. O modelo, caso seja adotado para a reconstrução, pode ser aplicado também em praças e em áreas gerais da cidade.
“Essas águas se acumulam e você vai precisar conviver com ela. É preciso um desenho urbano que acomode essas águas”, diz Pellegrino.
Mas dependendo do grau de ocupação desordenada da área urbana, leva mais tempo e necessita de mais investimento, diz Silva. Isso porque seria necessário retirar pessoas de áreas de alagamento e transferir para uma outra região para que esses espaços fossem criados e as áreas fossem alagadas sem afetar a população.
“Nós precisamos fazer projetos que sejam soluções baseadas na natureza. A ideia não é adaptar o meio ambiente ao nosso projeto, mas o contrário. O problema é tem muita coisa que foi feita no passado e não é tão simples resolver. Tem solução, dá pra fazer, mas precisa de um investimento elevado de dinheiro e tempo para implantar”, diz Silva.
Solução, porém, não seria suficiente, diz especialista
Segundo Philip Yang, fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem), somente as cidades-esponja não são suficientes para a situação do Rio Grande do Sul. É preciso pensar em uma infraestrutura verde maior para lidar com o agravamento climático, não só para o RS, mas para todos os estados do mundo. A infraestrutura verde inclui parques, telhados verdes, jardins de chuva, árvores urbanas e vegetação que ajudam a absorver e reter a água da chuva.
Ele explica que, caso a cidade fosse planejada como uma cidade-esponja, ajudaria a mitigar, mas não evitaria a tragédia como a desse mês. Isso porque, com o agravamento da crise climática, até mesmo os ecossistemas naturais têm sido incapazes de absorver as chuvas violentas.
Neste caso, explica Yang, o trabalho para criar uma infraestrutura verde para a reconstrução precisaria envolver todos os agentes da cidade, a exemplo de concessionárias de serviço público (eletricidade, estradas, mobilidade), e também de construtoras e incorporadoras, com um trabalho que extrapole os mandatos políticos, já que são obras que exigem uma maior complexidade. e demandam mais tempo.