A uma semana da cúpula de chefes de Estado do G20, grupo de 19 dos países mais ricos do mundo além de União Europeia e União Africana, o Brasil tem o desafio de acomodar interesses antagônicos na declaração a ser assinada por todos os participantes ao fim dos dois dias de encontro.
O Brasil herdou o comando do grupo da Índia e escolheu três grandes temas para o período à frente do fórum de cooperação internacional: combate à fome, à pobreza e à desigualdade, desenvolvimento sustentável e reforma da governança global. O bastão será passado oficialmente para a África do Sul em 1º de dezembro.
A reunião de mais alto nível, que será realizada no Rio de Janeiro, é o ápice de um ano de negociações. Em mais de 130 reuniões técnicas e ministeriais realizadas nas cinco regiões do Brasil, em Washington e em Nova York, a diplomacia brasileira conquistou avanços, como os primeiros consensos ministeriais desde o início da guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022.
A estratégia de deixar o debate sobre conflitos geopolíticos para os chefes de Estado abriu caminho para a aprovação de 41 comunicados em nível ministerial, com destaque para os dos ministros de finanças, de desenvolvimento e do grupo de transição energética, fundamentais para as ambições brasileiras.
A capacidade de o Brasil liderar consensos na atual conjuntura externa de acirramento de tensões foi elogiada pela pesquisadora do Brics Policy Center e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Ana Saggioro Garcia. Mesmo sem avanços em medidas mais concretas, até agora, ela destaca a inclusão da desigualdade no centro da agenda do G20.
“Seria difícil para qualquer país conseguir grandes transformações, mas o Brasil incluiu agendas importantes nesse cenário adverso […] A presidência brasileira tem o mérito de colocar o tema das desigualdades e das questões sociais no centro da agenda do G20.”
Negociadores do Ministério das Relações Exteriores avaliam que os acordos nos grupos temáticos vão ajudar a destravar o texto final, que deve ser aprovado pelos líderes. Ainda é preciso definir, no entanto, quais trechos serão incluídos no documento, que teve 37 páginas na presidência indiana.
O G20 é dividido em duas frentes de trabalho: as trilhas de sherpas e de finanças. A de sherpas é supervisionada por enviados dos chefes de Estado, responsáveis por acompanhar as negociações e discutir as principais pautas. Já a de finanças trata de temas econômicos e é comandada por líderes dos ministérios da economia e presidentes de bancos centrais.
Uma inovação da presidência brasileira foi integrar as trilhas e criar forças-tarefas coordenadas por ambas para turbinar os principais objetivos, caso da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. A iniciativa é vista como a principal marca brasileira à frente do G20.
“O Brasil superou a divisão entre as trilhas de sherpas e de finanças e, de certa forma, misturou as duas trilhas. Nada da trilha dos sherpas funciona sem as finanças. Não se resolve questões de clima e de combate à fome sem financiamento ou tributação”, afirma o professor em relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano Schutte, também do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB).
Até agora, diz ele, o Brasil tem conseguido evitar o contágio de questões geopolíticas como a guerra da Ucrânia e o conflito em Gaza na negociação do G20. “Vamos ver se consegue blindar até o fim. Seria algo que poderia até impedir um comunicado final.”
A linguagem da declaração sobre os conflitos geopolíticos deve ser discutida até o último minuto. Se as guerras ficaram fora das declarações ministeriais, agora será inevitável encerrar o impasse e encontrar um denominador comum sobre o tema. O debate vai dominar o último encontro dos sherpas do G20, também no Rio, ao longo desta semana.
O objetivo é chegar a um ajuste fino sobre palavras ou expressões que não comprometam o entendimento diplomático entre os países sobre a guerra na Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio e, por consequência, impeçam a divulgação do comunicado.
“O máximo possível será alguma declaração genérica no sentido de trabalhar pela paz mundial e tentar se chegar a uma solução pacífica, mas nada que aponte um dedo para os culpados porque tomar um lado fatalmente divide os países do G20”, diz Maurício Santoro, cientista político e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha.
Um dos destaques na presidência brasileira foi a agenda ambiental. Ainda que o tema estivesse em outras presidências do G20, o Brasil conseguiu deixar sua marca, até pela importância e capacidade de liderança no tema, afirma o coordenador do Centro Internacional de Políticas para o Desenvolvimento Inclusivo (IPCid) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), André de Mello e Souza.
“O Brasil é um ator demasiadamente importante na questão ambiental e essa marca brasileira ficou clara no G20. É uma área que podemos liderar”, diz, ao citar o foco dado às transições energéticas.
Coordenador da organização The Bretton Woods Project, o economista Luiz Vieira destaca ainda os resultados na área tributária, com consenso entre ministros de finanças sobre a taxação dos super-ricos. Mas não vê o mesmo avanço sobre reformas estruturais de organizações multilaterais.
“É uma área na qual o processo será mais difícil e devagar, porque o G20 não é responsável pela gestão de instituições multilaterais”, diz, ao lembrar que o G20 não tem o poder de criar leis.
“Após três presidências de países do Sul Global [Indonésia, Índia e Brasil], não foi possível progredir em reformas da arquitetura internacional. Isso define o que é possível fazer em financiamento para o desenvolvimento e resposta à emergência climática e mostra os limites de um grupo que, no fundo, reproduz as dinâmicas internacionais”, avalia.
Para especialistas, a eleição de Trump tende a enfraquecer as propostas brasileiras à frente do G20. Os negociadores brasileiros, porém, sustentam que a eleição americana terá pouco impacto, porque as negociações foram construídas no governo de Joe Biden.
“A cúpula vai ocorrer em contexto em que o presidente americano é como um pato manco, sem legitimidade para grandes decisões”, diz Santoro sobre Biden.
Para Schutte, da UFABC, o ideal seria que uma equipe de Trump também participasse do encontro. “Mas não considero isso provável pela visão dele do multilateralismo. A probabilidade de Trump incorporar ideias do G20 em sua gestão é próxima a zero”.
Como Santoro, Schutte vê a cúpula como oportunidade para o governo Lula colocar o Brasil de novo na arena internacional, mesmo com entraves e eventuais retrocessos do G20 no futuro.
“O Brasil deu um ‘upgrade’ como ator internacional ao presidir o G20, acumulou experiência e visibilidade. Isso será usado na presidência do Brics em 2025 e também na COP30. Por mais que se diga que é chatice, perda de dinheiro ou burocracia, é o maior esforço já feito pelo Brasil em cooperação internacional”, diz Schutte.