Em Londres, escaldado, um pequeno restaurante vietnamita em Piccadilly Circus envia à mesa um gerente com a lista ilustrada de todos os frutos do mar, castanhas e ingredientes exóticos de seus pratos antes de aceitar pedidos. Lá e em outros estabelecimentos mundo afora, a primeira pergunta que se faz ao cliente, do momento da reserva por telefone até a hora em que se sentam à mesa, é se alguém tem problemas com o que quer que seja.
O mundo nunca foi tão alérgico, e a tendência é que até 2030 metade da população seja acometida por alergias respiratórias, cutâneas ou alimentares, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Médicos e especialistas afirmam que é preciso falar mais sobre alergias e levá-las a sério. Isso significa ouvir mais os pacientes, ajudá-los a entender os sintomas e estimulá-los a trocar informações com outras pessoas que sofram dos mesmos males. E não é só isso: querem mais investimentos em pesquisas. Afinal é tema que, se as projeções estiverem corretas, afetará em breve a vida de mais de 4 bilhões de pessoas.
Se algumas alergias são mais evidentes, pois matam de imediato, outras, aparentemente mais inofensivas, podem fazê-lo de forma gradual ou simplesmente transformar a rotina de quem convive com elas em um pesadelo.
Muita gente torce o nariz para o que vê como frescura ou conversa de hipocondríaco – durante muitas décadas até os médicos estavam convencidos de que era mesmo, segundo o historiador Matthew Smith, autor do livro “Another Person’s Poison: A History of Food Allergy” (Veneno para uns: a história da alergia alimentar, em tradução livre), publicado em 2018 pela Columbia University Press. E as alimentares têm a ver com tantas questões pessoais e ideológicas que é difícil saber o que é fato e o que é mito, segundo o especialista, professor de história da saúde da Universidade de Strathclyde, em Glasgow, na Escócia.
Diante da mudança do clima e de novos hábitos das populações, o ceticismo pode ser apenas uma questão de tempo. Há mais gente no mundo, mais poluição. A alimentação dos rebanhos mudou com o passar do tempo, assim como a nossa. Consumimos mais produtos químicos e até microplásticos.
Estima-se que uma pessoa ingira em média 50 mil partículas de microplástico por anos e respire igual quantidade, de acordo com estudo da Universidade de Victoria, no Canadá, publicado no periódico “Environmental Science and Technolgy”. Esse número pode ser ainda maior, segundo os cientistas, que reuniram dados de pesquisas com peixes, frutos do mar, açúcar, sal, cerveja, água e ar.
O pólen, responsável por crises alérgicas em cerca de 30% da população mundial, também pode estar passando por transformações. O tempo mais quente, mais seco ou mais chuvoso, afeta as condições em que se dá a polinização das plantas. O pólen disperso no ambiente pode ter novas variedades ou aparecer em quantidades ainda mais substantivas.
A estimativa é que, só nos Estados Unidos, sua quantidade deve aumentar em 200% neste século se o mundo continuar a produzir emissões de dióxido de carbono a um ritmo elevado. A temporada do pólen, em geral, vai ter início 40 dias antes na primavera e vai durar até 19 dias a mais do que hoje.
As condições de assepsia, hoje muito melhores do que na Idade Média, como lembra Smith, também estão por trás da nossa menor exposição a sujeira e alérgenos, o que pode diminuir a nossa resistência a eles. Especialistas avisam que ninguém está imune, literalmente. Alergias podem se manifestar na infância ou na fase adulta; podem ser provocadas por condições genéticas ou alérgenos vários em doses pequenas, grandes ou cumulativas.
A verdade é que sempre estiveram entre nós. Na Grécia Antiga, Hipócrates (460 a.C. -370 a.C.), considerado o pai da medicina, descreve reações a vários tipos de alimentos, inclusive queijo. Mais de mil anos depois, Ricardo III teria crises agudas de urticária causadas por morangos. Como achava se tratar de bruxaria, teria mandado executar súditos e parentes que via envolvidos numa espécie de teoria da conspiração.
Tudo isso sempre se encarregou de oferecer ainda mais complexidade aos estudos da matéria. Smith conta ao Valor que a palavra alergia surgiu em 1906. De lá para cá, foi encarada com mais ou menos preocupação. Depois das grandes guerras mundiais, foi vista como fricote ou doenças psicossomáticas. O que acendeu o sinal de alerta, no entanto, foi o amendoim, no fim da década de 1980. Ali, percebeu-se que poderiam ser mortais. Casos de morte em aviões provocada pela simples abertura de um pacote de amendoins começaram a aparecer.
O historiador lembra de seus tempos de criança, quando ele e colegas comiam sanduíche de pasta de amendoim praticamente todos os dias. “Hoje, a escola do meu filho, além de não oferecer o item para consumo, sequer permite que as crianças o tenham na lancheira”, afirma.
É difícil para levantar fundos para estudos relacionados a alergias”
— Jean-Philippe Girard
Autora do livro “Alérgicos: Como nosso sistema imunológico reage a um mundo em transformação”, publicado no Brasil neste ano pela BestSeller, com tradução de Livia de Almeida, a antropóloga de medicina Theresa MacPhail perdeu o pai cedo. Ele tinha 47 anos quando morreu após choque anafilático causado por picada de abelha. Era alérgico, não sabia e tratou como bobagem sintomas posteriores.
Mas não foi isso o que a levou a debruçar-se sobre o tema. A especialista descobriu-se, ela também, alérgica em 2015, após a quarta infecção respiratória em menos de um ano. Suas pesquisas revelam que esse é um universo pouco claro, de estatísticas incompletas, contraditórias e, muitas vezes, baseadas em dados ou critérios que variam segundo quem os coleta.
A própria definição do que é uma alergia podia variar. “Analisei como os pesquisadores definiam os critérios de inclusão para a categoria ‘asmáticos’. A depender dos critérios que usam, significa deixar dentro ou fora do grupo até 30% das crianças. É uma diferença bastante dramática”, diz. “Então, quem é capaz de dizer se você tem alergia? É você? São seus pais? No caso da asma, será que os pais que estão vendo o filho com dificuldade para respirar a atribuem à estação do ano? Ou cabe ao pediatra ou médico dizer?”, ressalta.
Tudo isso, segundo MacPhail, interfere nos processos decisórios e explica por que tantas pessoas se autodiagnosticam, muitas vezes de forma equivocada. Para ela, uma alergia envolve necessariamente a resposta do sistema imunológico. “Se forem as células imunológicas reagindo, então é uma condição alérgica. Se algo mais estiver acontecendo, não é”, afirma a antropóloga.
Ela explica que, em geral, os mesmos mecanismos biológicos são ativados, embora se expressem de maneira diferente. “Essa é outra coisa estranha sobre alergia e doenças alérgicas: um mesmo componente pode afetar a pele ou o trato nasal de pessoas diferentes. São os mesmos processos por trás de tudo. É apenas onde está acontecendo no corpo”, afirma.
Ao ver-se alérgica, a especialista diz ter se sentido amparada pelo fato de não estar sozinha nos seus desconfortos. “De repente, parecia que todo mundo que eu conhecia tinha algum tipo de condição alérgica. Só não falavam sobre elas. Quando eu dizia que queria ouvir suas experiências, virei uma espécie de padre num confessionário”, diz.
Foi assim que se deu conta de que esse era um problema bem maior do que imaginava. “É meio chocante quando você oferece um jantar e percebe como há pessoas alérgicas.”
Ainda que as estimativas possam variar, a depender do código usado nas internações por alergias, sintomas ou medicação, uma coisa é certa: os números só sobem. Segundo MacPhail, as prescrições de epinefrina aumentaram quatro vezes nas duas últimas décadas.
Para ela, tudo isso é confirmação de que é preciso falar das alergias. Ela atribui à falta de clareza preconceitos e ceticismo. E como alergias normalmente não matam, a tendência da sociedade é a de não levá-las a sério. “Fazemos gracinha com a intolerância a glúten ou com a rinite de outra pessoa sem pestanejar”, diz.
Alergias não precisam ser fatais para afetar a vida de alguém. Pessoas com respostas imunológicas alérgicas, ainda que leves, gastam tempo e dinheiro, convivem com um fardo que lhes priva de qualidade de vida, sentem-se abatidas com mais frequência e costumam ter níveis de ansiedade e estresse maiores, menor capacidade de concentração e menos energia, segundo MacPhail. Muitos já sabem que não se sentirão “ótimos” nunca. Contentam-se em estar “bem” na maior parte dos dias. Ou seja, é o que chama de normalização das alergias.
“Quem sofre sabe o que muitas vezes não se revela aos que estão livres dela: nossos corpos estão sempre esbarrando em bilhões de partículas invisíveis, micróbios, produtos químicos e proteínas que constituem o espaço e os objetos ao seu redor. Nossas células imunológicas tomam decisões rápidas, aceitando ou rejeitando aquilo que encontramos, inúmeras vezes ao dia, durante toda a nossa vida”, ressalta.
Ela e outros profissionais que se dedicam a entender esses fenômenos veem urgência no tema. Eles defendem mais recursos para pesquisas e querem que estes últimos saiam de orçamentos públicos e entidades que não necessariamente sejam os grandes laboratórios farmacêuticos, que ganham bilhões de dólares com o incômodo alheio. Só assim será possível evitar as alergias no futuro ou ter acesso a tratamentos mais eficientes que caibam no bolso.
“Drogas voltadas para alergias são das mais lucrativas para a indústria farmacêutica”, afirma MacPhail. Segundo ela, não falar sobre o tema só agrava o quadro. “Até as crianças começarem a enfrentar sérios problemas decorrentes de alergias alimentares, a ciência da alergologia era subfinanciada por toda parte, como me disseram cientistas. Se vai estudar alergia alimentar ou respiratória, boa sorte. Ninguém vai querer te dar dinheiro para isso”, destaca.
Recentemente, a equipe do pesquisador francês Jean-Philippe Girard, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisas da França (CNRS, na sigla em francês), revelou notícia promissora para o universo dos alérgicos. Eles descobriram a TL1A, a mais nova integrante da família das alarminas. Assim foram chamadas nos últimos anos as moléculas encontradas no epitélio humano que funcionam como uma espécie de sinalizador ou alarme do organismo. Sua função é de indicar a presença de invasores externos. Mas, ao fazê-lo, provocam uma reação inflamatória em cadeia. Este é um novo conceito que pode ajudar os especialistas a interromper ou conter esses processos que podem, em muitos casos, levar à morte.
Houve tantas mudanças que nossa evolução imunológica não consegue acompanhar”
— Theresa MacPhail
O que se sabe até agora é que a TL1A é uma de três alarminas conhecidas. É ativada em geral por fungos – entre eles o mais comum é o alternaria alternata – espalhados no ambiente em decorrência da umidade e frio, sobretudo nas horas que se seguem a tempestades. Como o pólen, esses fungos são encontrados no ambiente externo e, em muitos casos, levados para dentro de casa. Fungos, poeira e ácaros estão notadamente entre os maiores alérgenos.
“Na Austrália e nos Estados Unidos, eu não sei como funciona no Brasil, mas pouco depois de tormentas, registram-se centenas de casos de pessoas afetadas por crises alérgicas severas”, afirma Girard, que também é líder da equipe “Células endoteliais na imunidade, inflamação e câncer”, do CNRS, em entrevista ao Valor.
A TL1A está por trás de casos de rinite e asma severa, por exemplo. “São produtos de base liberados rapidamente nos primeiros minutos [de contato] e são capazes de desencadear reações inflamatórias em cascata. Presentes no epitélio do pulmão, brônquios e alvéolos pulmonares, também avisam quando há um vírus, como o da gripe”, explica Girard. São elas que acionam os mecanismos de defesa do corpo que produzem muco no pulmão e as inflamações.
A descrição desta nova alarmina está em estudo publicado por Girard em abril deste ano na revista científica “Journal of Experimental Medicine”. Mas essas moléculas são velhas conhecidas do professor francês. Foi ele quem descobriu a primeira alarmina mais de 20 anos atrás. Dos desdobramentos dessas pesquisas, resultaram novos estudos que devem levar ao mercado o primeiro medicamento biológico alternativo a tratar alergias concentrado nas alarminas, ainda em 2025.
A ideia é que a substância bloqueie sua atuação e, assim, ajude a evitar as crises severas. Está em fase 3 de testes e deve beneficiar sobretudo pacientes que sofrem de patologias como a doença pulmonar obstrutiva crônica. Esta última, como lembra Girard, é a terceira causa de mortes no mundo.
O medicamento ainda é caro. Cada dose deve sair a cerca de € 1 mil (mais de R$ 5.500). São necessárias 12, pois o tratamento prevê sua administração um vez por mês pelo período de um ano. Ou seja, o preço final do tratamento deve girar em torno de € 12 mil (quase R$ 67 mil), e, por isso, na França, deve ser reservado inicialmente apenas para os pacientes com patologias mais graves.
A expectativa do pesquisador francês é a de que os próximos tratamentos saiam dos laboratórios mais depressa e por preços mais acessíveis. “Este levou mais de 20 anos. Mas a tendência é que esse processo seja mais rápido para as outras moléculas pela experiência que já se tem e testes já realizados. A T1LA surgiu de pesquisas que já estávamos fazendo sobre a primeira alarmina. Pode ser que um mesmo medicamento possa ser usado em mais de um caso”, explica.
Se a descoberta realizada por este médico de Toulouse promete ter um alcance monumental entre as populações alérgicas, e possivelmente facilitar a vida de hospitais e desonerar os orçamentos públicos de saúde, este não é um segmento que pareça atraente para investimentos de governos e outras entidades que não sejam as grandes farmacêuticas, segundo ele.
“E olha que obtivemos resultados muito importantes. Imagine quem não tem. Ainda assim, eu tenho dificuldades para levantar fundos para estudos relacionados a alergias. Para outras doenças, como o câncer, bem menos”, conta. Para Girard, os estudos científicos provaram que o epitélio é chave na busca por respostas para as alergias.
O que esses e outros especialistas querem é chamar atenção para o problema. É preciso que as pessoas se preparem para novas alergias e tomem precauções. Em muitos países, parte da população acompanha em aplicativos não só a previsão do tempo, mas também a de quantidade de pólen no ar.
Segundo MacPhail, as temperaturas recordes registradas por todo o mundo ano a ano têm modificado as características das estações, transformando o ciclo das plantas e das condições atmosféricas. Tudo isso tem implicações sobre as vidas das pessoas, que terão de lidar com novos insetos, parasitas e fungos.
No hemisfério Norte, começam a surgir doenças que só afetavam países tropicais. É preciso olhar para bulas de remédios e de cosméticos. “Hoje, aplicamos mais cremes do que no passado. Isso tudo altera as condições da pele”, afirma MacPhail, que tem evitado exagerar nos sabonetes que usa durante o banho.
Ela recomenda que se tomem mais chuveiradas só com água para evitar o abuso das substâncias que tiram a proteção da pele. Também afirma que é melhor trocar menos vezes os lençóis da cama ou as toalhas de banho.
Mas não há uma única solução para todos. “Se você já tem eczema ou se é alérgico a ácaros, trocar os lençóis menos vezes pode não funcionar para você. Mas se é uma pessoa saudável, fazer a troca a cada duas semanas pode manter em nós partículas invisíveis que ajudam a treinar nossas células imunológicas”, afirma.
Ela também lembra a importância do equilíbrio do bioma intestinal. Não fará mal a quem é saudável consumir, com moderação, mais kefir, kombucha e outros alimentos fermentados que estimulem esse equilíbrio.
“Nós que sofremos de alergias gostamos de pensar que as alterações climáticas vão nos causar problemas dentro de 10, 20 anos. Mas, para quem sofre de alergias, a mudança climática começou a afetar agora”, ressalta MacPhail.
Alergias fazem o sistema imunológico trabalhar contra invasores, o que acaba debilitando os organismos, deixando-os mais frágeis e suscetíveis a outras infecções e contaminações. MacPhail ainda lembra que as mudanças externas são mais rápidas do que as transformações no nosso corpo.
“Nosso sistema imunológico não evolui tão rapidamente. Alguns dos componentes têm de 250 a 500 milhões de anos. Nos últimos 200 anos, houve tantas mudanças que nossa evolução imunológica simplesmente não consegue acompanhar. Todos nós usamos esses telefones e laptops. Você sabe como eles estão constantemente atualizando o software. Gosto de dizer que é como se estivéssemos presos ao Windows 97, sem possibilidade de atualização. Não há como baixar o novo software, porque ele não existe”, conclui.